Amigo de Jorge de Sena desde os tempos da juventude no Porto, João Alves deixou registradas em seu testemunho as impressões que teve do jovem poeta que frequentava as tertúlias literárias nos intervalos dos estudos de engenharia. Reproduzimos a seguir o depoimento, publicado originalmente no “Dossier Jorge de Sena” organizado por Luis Adriano Carlos para o Jornal Letras & Letras em 1988, seguido de nota de Mécia de Sena.
Conheci Jorge de Sena por 1940, no Porto, quando ele aí frequentava a Faculdade de Engenharia.
Teve lugar a apresentação na Livraria Tavares Martins, ao fundo da Rua dos Clérigos, esquerda de quem desce, Porto, livraria que tora sempre e era frequentada, em termos de tertúlia, por vários intelectuais, e assim, por épocas: Visconde de Vila-Moura, Gomes Teixeira, Mendes Correia, Antero de Figueiredo, Januário Leite; — Teixeira Rego, José Marinho; — Alberto de Serpa, Jorge de Sena, Abreu e Souza (escritor teatral).
Foi Alberto de Serpa quem nos apresentou.
Alberto, no seu hábito de chão humorismo, frequentemente designava Jorge de Sena às pessoas de convívio por «o meu amigo bonito».
Uma vez por outra endereçava este epíteto, relativo ao Jorge, à empregada da caixa da livraria, no intuito, creio, de jocosamente meter em apuros quer a compostura profissional dela, quer a verdura juvenil dele, mas não conseguia abalar qualquer desses redutos.
Travado esse conhecimento, passei a tratar com o Jorge, tanto na dita livraria, como em encontros eventuais de rua e cafés.
Daqueles, ocorre-me um no jardim da Rotunda da Boavista, por onde ele, residente num quarto da Rua de Cedofeita, ia espalhar os seus pesos de vésperas de actos universitários (exames); dos outros, alguns no extinto Café Palladium, ângulo sul-poente do cruzamento das ruas Santa Catarina e Passos Manuel, Porto.
Entretanto, ele tinha já pronto para imprimir o livro de poemas Perseguição.
Mas, sujeito à escassez pecuniária com que as famílias costumam formar o senso admi-nistrativo dos seus rebentos, faltavam-lhe posses para enfrentar o então maior dos encargos, que era o do papel.
E que ao tempo já decorria a Guerra Mundial e por isso faltava no mercado o papel de impressão, que, quando escassamente obtido, ficava por peso de ouro.
Quando eu soube da contingência, disse-lhe com aquela maravilhosa transparência que distingue, além do mais, os jovens dos seres humanos similares dos crocodilos velhos.
— Ó Jorge, não se preocupe, eu resolvo-lhe essa dificuldade.
Ele teve uma vertigem de grata emoção.
E, para o convencer da probidade da minha oferta, logo o levei à minha casa, a de meus pais, rua do Paraíso, 49, Porto.
Chegados, descemos à cave onde ele me viu abrir uma grande caixa de pinho, tão maravilhado como quem vê abrir o cofre do tesouro dos contos de piratas: dentro estava um bem farto lote de papel de imnressão da melhor qualidade, que, por contingências, eu possuía.
Logo ali o declarei dono desse pequeno tesouro, a troco duma insignificância em dinheiro, que, para salvaguarda do brio dele, logo fixámos.
E, logo no dia seguinte, antes que houvesse algum terramoto ou cataclismo equiparável, eis Jorge a aparecer em minha casa e a levar em táxi as resmas de papel que o acaso tivera longo tempo à espera dele.
Dos percalços da época académica de Jorge no Porto ocorre-me um, que define dois temperamentos e não chega a desonrar qualquer deles.
Pedro Homem de Melo, que nunca fez rebuço da sua conhecida exuberância e que não podia ter deixado de entrar em convívio com o Jorge, desafiou este para uma castiça digressão pelo Minho, ao que o desafiado anuiu sofregamente, exilado, como era, no severo burgo portuense, além de solitário mancebo ávido de quanto pudesse animar o seu melancólico giro diário de discente.
Partiram de comboio e foram, que, esperando, era inverno, são, descendo em várias estações da linha do Minho, para escala da respectiva povoação, onde Homem de Melo quase sempre se separava do companheiro e tempo depois reaparecia a contar a maravilhosa recepção que lhe fora feita por senhoras e castelãs da sua privança, assim como, cerimónia que nunca fez de clamar as suas sensações, a descrever minuciosamente as requintadas iguarias que lhe haviam sido servidas em pala-ciano ágape.
O Jorge, que pelo tom do desafio inicial ficara a entrever um apoio de amigáveis confortos à sua magra bolsa de estudante e que, esperando, era Inverno, ficara sobre o famélico a tiritar na solitude do seu quarto, mordia os lábios raivosamente e fazia íntimos propósitos de sangrenta vingança.
Regressados ao Porto, berrava de punhos cerrados, expressionistamente:
— Eu mato-o! Eu mato-o!
Mas não matou, claro.
Aliás — Homem de Melo não mereceria ser morto por isso.
Mas quadrava-lhe muito bem ser executado em efígie.
Porto, 4 de Setembro de 1983
Nota — Esta saborosa rememoração continha, na sua versão original, dois pequenos erros de facto, tão naturais de quem lembra do passado, neste caso mais de quarenta anos depois, que me permiti corrigir, para evitar confusões futuras. Eram eles os seguintes. Referindo-se o Dr. João Alves [Gomes dos Santos] ao ano em que conhecera Jorge de Sena, apontava para 1938, data em que este estava ainda a frequentar a Faculdade de Ciências de Lisboa. A sua ida para o Porto deu-se em fins de Outubro de 1940.
E, referindo-se ao papel salvador, dizia destinar-se ele a Coroa da Terra, livro que só foi publicado em 1946, quando Jorge de Sena estava já regressado a Lisboa, com o curso concluído em Novembro de 1944.
Se alguma dúvida, no entanto, pudesse subsistir, teria uma carta dirigida a José Blanc de Portugal, datada de 8/11/42, cujo passo esclarecedor transcrevo: «Como V. sabe a publicação do meu livro nasceu da oferta do papel a um preço de mais que amigo pelo João Alves (conhece-o?) e de, em face dessa oferta, o [Thomas] Kim e o Ruy [Cinatti], com uma dedicação que nunca esquecerei, me terem prometido o empréstimo «sine die» de 250$00 cada».
Está, pois, fora de causa que se tratava de Perseguição, publicada em fins de Agosto desse ano, e onde há um poema dedicado a João Alves («Ascenção») e até a completar indicação da exacta quantia da amiga e providencial transacção.
Quanto ao episódio da «secretária da caixa», sem dúvida que era aivo de gracejo deles, uma vez que Alberto de Serpa também se refere ao facto numa sua carta da mesma época.
Cumpre-me deixar aqui um agradecimento póstumo a João Alves, que me permitiu em vida a publicação deste texto, bem como a sua Viúva, que confirmou essa autorização.
Santa Barbara, 17-Abril-1988 Mécia de Sena