Depois da “Revolução dos Cravos”, o “10 de Junho” só veio a recuperar a grande solenidade com que vinha sendo comemorado desde 1880 – ano do famoso “Terceiro Centenário” – em 1977, quando o General Ramalho Eanes, recém-eleito presidente da República por larga maioria de votos, decidiu rebatizá-lo de “Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas”, nomeando um comissário da celebração e descentralizando as cerimônias oficiais para cidades da província. Nesse ano de 1977 coube ao Major Victor Alves orquestrar os festejos na cidade da Guarda, que, além da comitiva oficial, recebeu espantoso número de visitantes – muitos depois apinhados no ginásio do então Liceu da Guarda para ouvir os pronunciamentos cívicos, destacando-se os discursos de Vergílio Ferreira e de Jorge de Sena.
Vários são os comentários que nos chegaram sobre a “atuação” de Jorge de Sena nesse dia, quer na imprensa, quer em testemunhos como, por exemplo, o de José Saramago, já aqui transcrito, o de Vergílio Ferreira, em Conta Corrente 2, e o de Baptista Bastos (ver http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=374958). Mas, aqui interessa-nos resgatar a própria avaliação do autor.
Dos registros publicados de JS, o primeiro anúncio sobre a sessão encontra-se na carta de 15/5/1977 que dirigiu a Eduardo Lourenço: A 5 ou 6 de Junho, voarei para Lisboa, pois que deverei proferir o sermão do 50º aniversário da presença em Coimbra a 7 […] e o sermão camoniano, na Guarda a 10, a convite das comemorações que são mais do “emigrante” a que se quer lamber o rabo e a bolsa do que do Camões emigrante também (fala, em nome da região, e não sei que mais, antes de mim, o Vergílio Ferreira, e, depois de mim, o Ramalho Eanes com quem está marcado que eu me encontre amanhã).
A notícia merece comentário de Eduardo Lourenço, em carta de 26 de maio: Essa história das “comunidades”, de inspiração Adriano Moreira nítida, em si podia ser aceitável, mas temo que faça parte de um “novo lusitanismo”, compensador de ilusões perdidas. Além de caça ao franco e ao dólar que sublinhas. Nem por outro motivo se escolheu a Guarda, a Guarda da minha emigração e filiação, para altar da lusitanidade. Cá espero as vossas celebrações ecumênicas (a tua e a do Vergílio) nessa capital de neve e de reaccionarismo pátrio.
E ainda, antes do evento, retorna JS ao assunto, em carta de 2 de junho: E a 10, [estarei] na Guarda, com o Presidente, se até lá houver o Presidente, e a Guarda, é claro. Meu caro: a ideia das “comunidades” será, e tanto se me dá, do Moreira Adriano, mas também é minha, por exemplo, que todos os anos celebro, de sumo sacerdote, o “Dia” na Califórnia, e sei a importância que a reunião tem para a colónia e para os laços dela com Portugal. […] Quando me convidaram para perorar e me disseram que era na Guarda (o convite veio do Vítor Alves, ou através dele, eu perguntei se a escolha era feita por ser a cidade mais “alta” de Portugal (800m que é que, sem “altura” têm Madrid ou São Paulo, e há quem tenha mais)… Se é o centro da reaccção, acho que é de boa política ir lá; se é centro simpatório, idem; e se é só o que é ou isso tudo, sempre haverá, em 800 metros, o Camões e eu falando dele que, com V. Senhoria e alguns mais, somos as alturas daquela caca que a Providência nos deu para nascer e amar.
Já da Califórnia, a 11 de julho, JS relata ao amigo: voltei de Paris a Portugal para pregar o meu sermão coimbrão sobre a presença, [e] o sermão nacional na Guarda, que foi uma grandiosa e comovente coisa de que nem jornais nem TV deram a magnitude (e o povinho miúdo a abraçar-me depois, agradecendo o que eu tinha dito), pois que a TV não deu uma só imagem da multidão imensa de milhares e milhares de pessoas dentro e fora do edifício.*
Contudo, onde mais largamente JS comenta a sessão da Guarda, e questões afins, é na “Carta aberta” que escreve, quase 10 meses depois, a 26 de março de 1978, ao “Exmo. Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, e também aos Exmos. Secretário e Sub-Secretário da Emigração”, publicada pelo Diário Popular de Lisboa, a 3 de maio desse ano [ver a transcrição neste site]
Como se sabe, Jorge de Sena faleceu quase que exatamente um ano após o “Discurso da Guarda” – sem mais tempo para voltar a tratar de Camões, note-se – e um mês depois da publicação dessa “carta-aberta”. Sem dúvida, os dois textos devem ser lidos como manifestações testamentárias.