Em 1962, concentrado na elaboração da tese Uma Canção de Camões, sem abdicar da docência acadêmica em duas cidades do interior de São Paulo, a produção ensaística esparsa de Jorge de Sena restringiu-se à colaboração mantida no jornal O Estado de São Paulo e à que resultou de umas poucas participações em eventos culturais. Dentre estas, é de destacar sua conferência no curso "Barroco Literário", organizado por Antonio Cândido na Fundação Armando Álvares Penteado, em setembro/outubro. Dessa altura, e ainda à volta do período barroco, é também a recensão crítica que dedica à antologia da obra do Padre Manuel Bernardes, editada sob responsabilidade de Coimbra Martins, e que Sena publica a 13 de outubro no "Suplemento Literário" daquele jornal paulista. Os dois longos parágrafos dedicados à avaliação dos escritos "espirituais" desse oratoriano seiscentista constituem, porventura, os mais agressivos que Sena jamais teria desferido contra algum escritor. Entretando, dois anos depois, uma citação de Manuel Bernardes comporá a página de epígrafes da novela O Físico Prodigioso. Sabendo-se que na obra seniana há grande unidade e nada parece gratuito, recomenda-se ler essa epígrafe em cotejo com a recensão que em breve faz 50 anos, abaixo transcrita.
O padre Manuel Bernardes foi sempre tido e continua a ser havido como uma glória da literatura portuguesa. Os louvores à pureza clássica da sua prosa e à limpidez da sua espiritualidade têm contribuído consideravelmente para os erros de juízo acerca da época barroca, de que ele, com Rodrigues Lobo, Fr. Luiz de Souza, Jacinto Freire de Andrade, Francisco Manuel de Melo, António Vieira, Fr. António das Chagas, e a Arte de Furtar, é, conforme as selectas e as histórias são mais ou menos resumidas, uma das indefectíveis e modelares expressões da bela prosa. Os outros podem não aparecer todos: o seráfico autor da Nova Floresta lá está sempre, respeitosamente instalado. Lobo e Fr. Luiz é muito duvidoso que possam ser considerados barrocos, na elegância fluente e linear das suas prosas respectivas, tão dadas mais à humanidade pensativa da experiência humana que é a deles, e à visualização idealizada de uma natureza a que são agudamente sensíveis. São, antes, os últimos maneiristas, como, sob certos aspectos, o é também D. Francisco Manuel. Freire de Andrade é o derradeiro expoente da prosa heróica, à maneira de João de Barros, mas depurada pelos ideais de geometrismo do melhor Barroco. Fr. António das Chagas transferiu para os seus escritos devotos e para a delicadeza untuosa dos conselhos espirituais, uma experiência de vida e de poesia, que faz dele uma das personalidades mais interessantes do período, em que avultam os homens tremendos como inteligência e como domínio orgulhoso da expressão, que são Melo e Vieira. A Arte de Furtar é, numa época em que a ironia está em toda a parte, uma gigantesca metáfora satírica. Bernardes, a comparar com todos estes homens e obras, é a prova mais cabal de que um estilo só é um homem, quando esse homem não é uma cavalgadura. Os ideais dos gramáticos reaccionários não podiam deixar de aclamar o estilo de um homem cuja obra é uma escola de imbecilidade. Porque o que, em Vieira podemos levar à conta de uma loucura de génio, é em Bernardes a cretinice obsessiva de um filho natural de judeu e de mãe dissoluta, que quer todos os cristãos à escala da sua castração mental. Não admira que, nos tempos recentes, as belezas de Bernardes tivessem sido postas em antologia pelo Bernardes do Romantismo, que o cego Castilho foi, e por Agostinho de Campos, que denunciava os modernistas à polícia. E, salvo pela linguagem «castiça» ao merecido ridículo das suas historietas crédulas e idiotas, o padre Bernardes sobrevive a uma época que hoje consideramos notável, precisamente na medida em que ela escapou à influência deletéria dos muitos Bernardes oficiais que pulularam nela. Bernardes pertence, não à história literária, mas à história da incultura portuguesa. E não deixa de ser uma deliciosa ironia que este vigilante defensor da ortodoxia subitamente se nos revele, na sua imbecilidade zelosa, como um autor envenenado pelo quietismo que combatia. No encalço dos estudos de Robert Ricard, o jovem estudioso Coimbra Martins apresenta e selecciona excelentemente o reverendo padre. Não são mais as graças ingénuas da devoção o que é recolhido nestas páginas do maior interesse. Mas, sim, os aspectos especulativos, se assim pode chamar-se à actividade para-intelectual do divulgador sem nível filosófico e teológico, que Bernardes foi. Poderia fazer-se de Bernardes uma antologia do mais alto «humour», digna de um Swift, se o humor do pobre padre não fosse virtuosamente involuntário. Mas ainda bem que não faltaram nesta antologia aquele trecho sobre a guerra dos ossos de frades e de leigos, nem o magistral ensaio sobre as dimensões do inferno e a sua capacidade, da qual se deduz seguramente o número viável dos danados…
O trabalho de Coimbra Martins é muito sério e desenvolvido com discreta ironia. Para a história das ideias involuntárias em Portugal é, ao alcance de todos, indispensável. E, para lançar a suspeição sobre um escritor que detinha o respeito das sacristias, decisivo. Eu creio sinceramente que nenhum católico esclarecido e sincero possa, depois de compulsar esta antologia, mencionar o nome de Bernardes sem corar de vergonha. Porque, e é esse o segredo da prosa dele, Bernardes não é um pobre de espírito, que mereça a nossa simpatia, e tenha por natureza o seu ganho. Ele é um possesso de imbecilidade, que tudo faz para torná-la fascinante. Apesar de imenso, deve ter encontrado espaço para ele mesmo no inferno cujas dimensões tanto o preocupavam. Malignamente devoto, lá tinha as suas razões. Mas a história da literatura portuguesa e a estética literária nada têm com isso. A literatura barroca é outra coisa, felizmente, E é-o, ainda quando um Vieira igualmente se preocupa com as dimensões do inferno. Porque o inferno do padre Vieira não podia ser o do padre Manuel Bernardes, morto em 1710 (em geral esquece-se que quase um século o separa de Rodrigues Lobo e de Fr. Luiz de Souza, e quase quarenta anos de Vieira e Francisco Manuel), quando a Europa, desenvolvendo as linhas de pensamento do mundo barroco, não admitiria já, senão como caricatura, aquela confiança nos números que o matematicismo primário inspira barrocamente a Bernardes. Caricatura da espiritualidade barroca, isso sim, ele é. E, como escritor de tão decantado estilo, é inconcebível que continue a passar por tal uma doçura de linguagem, em que nenhuma ideia, nenhum sentido estético da expressão, nenhuma humanidade viva, compensam o proselitismo fradesco. Tomou-se por estilo o que era uma retórica de catecismo para boi dormir. Credulidade por credulidade, antes as fantasias históricas de Fr. Bernardo de Brito, que ao menos sabia e sentia o que fosse criação artística. Que este meritório volume, chamando a atenção para Manuel Bernardes, ajude a enterrá-lo definitivamente. A literatura portuguesa sempre andou precisada de limpeza.
*Selecção, introdução, cronologia e notas por António Coimbra Martins – Livraria Bertrand, Lisboa (1962)