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O dinheiro em poesia

  • Categoria do post:Poesia

Dentre os vários temas rastreáveis ao longo da obra poética de Jorge de Sena está o do valor, associado ao dinheiro. Este, habitualmente, ligado à necessidade de ganhar a vida através do trabalho e de prover o sustento próprio e da família – uma tarefa em geral marcada por dificuldades quando se vive num sistema onde o que importa é o lucro, mas que pode ultrapassar o suprir de necessidades materiais.

Compõem esta seleção poemas em que o dinheiro, ou sua ausência, surge marcando a desvalorização do ser humano, como é o caso de “Tudo é tão caro”, “Rendimento”, “Ode aos livros que não posso comprar”, “Lisboa 1971” e “Filmes pornográficos”. No fértil campo dos valores mais abstratos – como o conhecimento, o amor e a própria vida – fazem-se enunciar poemas como os bem conhecidos “Carta a Meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” e “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”. Um poema que fortemente concentra ambas as temáticas aqui destacadas é “Lamento de um pai de família”.

Observando a ordem da datação dos poemas, esta pequena coletânea atesta a permanência do tema dos anos 40 aos anos 70 – ou seja, durante o período mais maduro e produtivo do autor.

 

  • Ode aos livros que não posso comprar (40 Anos de Servidão)
  • Rendimento (Post-Scriptum-1960, Poesia I)
  • Tudo é tão caro (40 Anos de Servidão)
  • Lamento de um pai de família (40 Anos de Servidão)
  • Lisboa, 1971 (Exorcismos, Poesia III)

 

Ode aos livros que não posso comprar

Hoje fiz uma lista de livros,
e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

Mas também é certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,
para comprar alguns livros
– sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quantos sentiram, ou sós, ou mal acompanhados,
alguns outros que, se lhes falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que não se perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida.

Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,
Nem de que, em breve, se morrerá de outra fome maior,
Do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
Ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
Capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
Uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei
Para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles
Folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
E sair de casa, contando os tostões que me restam,
A ver se chegam para o carro elétrico,
Até a outra porta.

27/6/1944

 

 

Rendimento

Estava sentado num degrau da porta,
encostado à ombreira,
numa rua de ligação, sem montras,
onde só passam carros e as pessoas a encurtar caminho.

A face pálida, boca entreaberta,
barba por fazer e o cabelo em repas desoladas.

Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos,
ora muito abertos, ora piscando muito.

No regaço, e protegido pelos joelhos agudos,
tinha um boné no qual
esmolavam os transeuntes.

Da lapela, preso por um alfinete,
pendia amarrotado e sujo um boletim
da Assistência Nacional dos Trabalhadores.

Era o cartão de visita, o bilhete
de identidade, a certidão, a carta
de curso, a apólice de seguro,
o título do Estado.
E, no boné, como se vê, caía o juro.

Lisboa, 25/6/1946

 

 

Tudo é tão caro

Tudo é tão caro!
Como afinal a vida.
Pedes que te dê
quanto não tenho
para comprar-te.
Se nada pedes
apenas por que eu veja,
nem mesmo com possuir
eu poderei pagar-te.

27/05/1951

 

Lamento de um pai de família

Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma
ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou só de putas
sem filhos? Neste espernear de canalhas, como pode ser?
Antes ser gigolô para machos e ou fêmeas, ser pederasta
profissional que optou pelo riso enternecido dos virtuosos
que se revêem nele e o decepcionado dos polícias que com ele
não fazem chantage porque não vale a pena. Antes ser denunciante
de amigos e inimigos, para ganhar a estima dos poderosos ou
dos partidos políticos que nos chamarão seus gênios. Antes
ser corneador de maridos mansos com as mulheres deles fáceis.
Antes reunir conferências de São Vicente de Paula, para roçar
o cu da virtude pelas distracções das sacristias escuras e
ter o prazer de acudir com camisolinhas aos pobres entre os quais
às vezes aparece um ou uma que dá gosto ver assim tão pobre por
se lhe verem os pêlos pelos rasgões da camisa ou algo de mais
impressionante para o subconsciente que sempre está nos olhos
que docemente se comovem com a miséria. Antes ir para as guerras
da civilização cristã ou da outra, matar os inimigos da conta corrente
e das fábricas de celofânicas bombas. Antes ser militar.
Ou marafona de circo. Ou santo, Ou demônio doméstico
torcendo as orelhas dos filhos à falta de torcê-los aos filhos
da puta. Ou gato. Ou cão. Ou piolho. Antes correr os riscos do
DDT, das carroças que os municípios têm para os cães suspeitos
de raivosos como todos os cães que se vê não lamberem as partes
das donas ou mesmo dos donos. Antes tudo isso que assistir a tudo,
sofrer de tudo e tudo, e ainda por cima ter de aturar o amor
paterno e os sorrisos displicentes dos homens de juízo
que deram pílulas às esposas, ou as mandaram à parteira secreta e
elas quiseram ir. Antes morrer.
Mas que adianta morrer? Quem nos garante que a morte
não existe só para os filhos da puta? Quem me garante que
não fico lá, assistindo a tudo, e sem sequer poder chamar-lhes
filhos da puta, com o devido respeito a essas senhoras que precisamente
se distinguem das outras por não terem filhos, nem desses nem dos outros?
Mas mesmo isto não consola nada. A quantidade, a variedade,
gastaram a força dos insultos. E não se pode passar a vida,
esta miséria que me dão e querem dar a meus filhos, a chamar nomes
feios a sujeitos mais feios do que os nomes. Como pode um homem
sequer estar vivo no meio disto, sem que o matem?
E o pior é que matam, sim, e sem saberem primeiro a quem,
para não se inquietarem com o problema de terem morto por engano
um irmão, desfalcando assim a família humana de algum ornamento
que a tornava menos humana e mais puta.

15/06/1964.

 

 

Lisboa, 1971

O chofer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto “calçar” uma das
que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
as pessoas esperam com raiva surda e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas da sopa do convento.
Mas o chofer de táxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
“…V. que nesse tempo ainda andava a fugir
de colhão para colhão do seu pai
para ver se escapava de ser filho da puta…”
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam – e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Lisboa, 5/8/1971

 

 

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