Ampliando referências pessoais, respigamos aqui as sucintas menções a Eduardo Lourenço nos Diários de Jorge de Sena — o que nos propicia mais detalhes do diálogo contido nas cartas que trocaram.
(Lisboa) 24 de outubro de 1953 – Encontrei o Eduardo Lourenço, que vai para Hamburgo como leitor.
(Lisboa) 7/8/9 de abril de 1954 – À noite fui à casa do [José-Augusto] França que telefonara a convidar. A Mécia não foi. E eu, exausto como estou, fui, porque estava o Lourenço, que veio da Alemanha para casar e regressa já. Devia-lhe carta, gostava de o ver, e apeteceu-me ler-lhe os sonetos [de As Evidências], que é ele uma das raras pessoas, como o Zé [José Blanc de Portugal], capaz de apreciá-los in the full. Pelo telefone disse isso ao França que achou muito bem (com a reserva, que se verá, de haver ambiente…). Ambiente havia, se ele não estivesse determinado afinal a, do mesmo passo, receber o Lourenço e tratar de uma "discussão" sobre arte abstracta, que vai realizar ad Galerias majorem gloriam. No momento em que podia ter proposto a leitura, expôs os termos para discussão, a título experimental, pois que nos convidava para a sessão próxima, como estrelas… Eu não teria entrado a fundo, se, a propósito de academismo e arte moderna, o Lourenço não tivesse começado a desenvolver ideias que eu expandi no artigo entregue ao Magalhães Filho. Se não apanhava o fio, e expunha o resto, ficariam julgando, ao vê-lo publicado, que eu fizera um artigo com as ideias do Lourenço. Isso levou-me depois a desenvolver, com desagrado geral e apoio do Lourenço, a ideia de que o surrealismo é uma ressurgência conservadora da "arte antiga", enquanto o abstraccionismo é o peso mortal a que chega a "arte moderna" dos Cézannes e Van Goghs. Eu, porém, disse reaccionarismo – e foi o diabo. Tardíssimo, exausto, tive de me vir embora, e decidido a não pôr os pés no festival da discussão. Estavam: [Adolfo] Casais ]Monteiro], [Fernando] Azevedo, [Marcelino] Vespeira, Lourenço e um abstracto simpático mas pouco à vontade, Joquim Rodrigo, que eu não conhecia. O Casais, como sempre nestas ocasiões, antipático comigo, aproveitando-se do meu cansaço evidente, sem o desculpar ou evitar. Será que alguém alguma vez será capaz de compreender e aliviar o cansaço dos outros?
(Lisboa) 2 de julho de 1954 – Entreguei ao Casais, que me pediu para conferências e artigos no Brasil, uma cópia à máquina de As Evidências. Outra mandarei para Hamburgo ao Eduardo Lourenço, que tanto empenho pusera em ouvi-los.
(Londres) 3 de outubro de 1968 – Comprei em Dundee um brochezinho de penas para a Mécia, a quem escrevo agora um postal (e outro ao MacNicoll). E ao Eduardo Lourenço, e ao [José Rodrigues] Miguéis.
(Roma) 29 de novembro de 1968 – A Luciana [Stegagno Picchio] informou-me que o [Giacinto] Manupella publicou "tudo" do E. [Estêvão] Rodrigues de Castro [1559-1638]. Preciso absolutamente ver esse livro aqui ou em Paris, pois que disso depende a organização das minhas notas ao E. Lourenço, anunciando a minha em breve passagem por Nice.
(Roma) 30 de novembro de 1968 – É uma e meia – e parto para Pisa às 8:20, e estarei em Nice à noite. Amanhã de manhã, telegrafarei ao Lourenço. Que dia, Deus meu!
(Nice) 01 de dezembro de 1968 – [Em Pisa] Entrei ainda em duas outras igrejas, vi o Palácio dos Cavaleiros, tentei almoçar num restaurante onde, com o movimento dominical de famílias e "comendatores", só consegui comer a sopa, e embarquei para Nice (por Livorno, Spyria, Génova) às 13:50. E cheguei às 9 da noite. Estava a mulher do Eduardo à minha espera, porque ele está de cama com uma hemorragia nasal. Trouxe-me de automóvel e estou instalado em casa deles. Como jantara um jantar volante no comboio, limitei-me a matar saudades do meu chá de "menthe", enquanto falámos ininterruptamente durante duas horas.
(Londres) 2/3 de dezembro de 1968 – Perdi a manhã toda, no que a Nice respeita, na conversa com o Lourenço, e almocei com eles. Depois do almoço, ele foi ao médico tirar o penso do nariz, passámos na estação para comprar couchette para Paris, e já anoitecia quando de automóvel me levaram a dar uma volta pela baía e até Cap Ferrat que tudo achei lindíssimo, mas muito Estoril demais (ou vice-versa). O velho Nice não vi, é claro, e D. Brites* nicles. Como sempre, onde tenho amigos não vejo nada ou quase nada – ou não faço o que preciso, para ver alguma coisa. Jantei em casa deles, e largaram-me na estação para o comboio das 8 que 12 horas depois me depunha na Gare de Lyon.
* Durante esta viagem pela Europa, JS procurava coletar dados para um projetado estudo sobre príncipes de Portugal que viveram no exterior. D. Brites era Beatriz, filha do rei D. Manuel (nascida em Lisboa, em 1504, faleceu em Nice em 1538) e foi duquesa de Sabóia pelo seu casamento, em 1521, com Carlos III.