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Carta a Murilo Mendes


Datada de maio de 1963, a carta agora editada (graças à constante colaboração de Mécia de Sena) apresenta-nos uma excelente síntese do "tempo brasileiro" até então vivenciado por Jorge de Sena, com destaque para a intensa produção que enumera ao amigo Murilo Mendes, em Roma. Às vésperas da primeira edição de Metamorfoses, note-se particularmente o parágrafo dedicado ao livro, que, como se sabe, tem título paralelo a um do poeta mineiro As Metamorfoses, de 1944.

 

Araraquara, São Paulo, Brasil, 10 de maio de 1963

Querido Murilo Mendes


Recebi ontem a sua carta de 2, com o recorte do jornal sobre a sua palestra que, como sempre sucede com as suas notícias e a sua amizade, me trouxe grande alegria. Nem sei como possa agradecer-lhe o que me diz e o bem que isso me fez numa altura de abatimento e desânimo, a que inclusivamente se acrescem preocupações acerca da minha estabilidade como professor universitário» Estou extremamente cansado de tanto trabalho, carregado e necessitado de mais trabalho sempre, e a repetida agonia do que vivo e vejo começa a ser demais para as minhas forças. E, no que se refere a minha atividade como professor aqui, corro o perigo de ser envolvido no expurgo que a reação organiza, encabeçada pelo Ademar, o Reale, e o secretário da Educação (um inominável padre Baleeiro que você, aí em Roma, poderia prejudicar um pouco, visto que ele se diz fundador de uma ordem, os Oblatos de Cristo Sacerdote, que se destina a distribuir auxílio financeiro – de onde? – aos párocos, e que não se sabe se é cobertura dos notórios maus costumes do sujeito). É evidente que nunca fiz política brasileira, e que, como adiante lhe direi, nem estou fazendo da portuguesa; e que nunca usei a minha cátedra para mais que ensinar o que sei. Mas as faculdades de interior são visadas por este neofascismo, e em especial a minha – tutti comunisti, a velha história. Não deixa de ser ironia que me eliminem do ensino, com essa sub-reptícia acusação, precisamente quando, em política portuguesa , eu, o Casais, o Paulo de Castro, o Fernando Lemos (a esquerda independente) cortámos de todo com os comunistas, e abandonámos o Portugal Democrático, por estarmos fartos de lidar com estalinistas bestas e incorrigíveis no seu oportunismo e na safadeza desleal do comportamento. É facílimo ao governador pôr-me na rua: basta recusar a minha recontratação, ou cortar-me o tempo integral (pelo qual ganho o dobro do que ganharia sem ele), sem o qual é impossível ficar trabalhando no interior. E, nas capitais, as cátedras estão todas ocupadas pelos que, em todas as circunstâncias, me têm impedido que eu regularize com um doutoramento, ou uma livre-docência a situação precária de ser ilustre só com um currículo. De modo que, no momento em que estou desenvolvendo um gigantesco trabalho de pesquisa, terei de suspender tudo, para voltar à engenharia ou sei lá quê, visto que tenho de ganhar pão dos meus nove filhos, e não poderei fazê-lo aqui, ganhando uma miséria (sem tempo integral) de setenta e tal contos, isto na hipótese improvável de só ir para a rua pela metade. Mas a intenção é mais ampla, do governo estadual: a liquidação das faculdades de filosofia, e a entrega delas a padres que o IMD e o Lacerda não considerem comunistas como o Papa é e possam salvar a civilização cristã do Ademar. Tudo isto é de um nojo que brada aos céus, e não sei se você aí, pelos jornais quase todos reacionários, poderá dar-se bem conta da luta de morte que se desenha aqui, porque eles gritam, mas não falam das pressões e infâmias. Poderá você achar que eu estou doido: mas a desvergonha pública destas direitas quase dá saudades do Salazar.

Não sei quantos artigos meus do Estadão você já leu; ao todo, serão sete, dos quais deve sair amanhã o quinto. Aquilo é, como depreendeu do início deles, o resumo, da minha tese de livre docência para Belo-Horizonte, de que fui excluído três dias depois de inscrito, por falta dos documentos que não me haviam pedido, e haviam assumido o compromisso de receber logo que eu voltasse a São Paulo… A razão dos artigos foi o "roubo" de um exemplar por um fulano que me escreveu anunciando que ia fazer um concurso com os meus métodos de pesquisa, que coincidiam com os que ele também tinha… Veja só. A obra deve ser publicada até ao fim deste ano pela Companhia Editora Nacional, graças à ação de uma das grandes consolações que o Brasil me tem dado e é a amizade de um homem tão, admirável como o António Cândido. A Gulbenkian, em Lisboa, ignorou a obra…; e compreende-se, uma vez que, implicitamente, é a demonstração da desonestidade de todos os Cidades e Pimpões que têm tido o Camões por conta.

Pergunta-me você quando darei uma edição crítica do Camões: É precisamente o que estou fazendo a todo o vapor, com um subsídio do INEP para os microfilmes, e outro da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, para as deslocações ao Rio de Janeiro. Também nisto o Ademar me ameaça, visto que a ganância dele parece que cobiça as verbas desta meritória instituição. A edição vai ser revolucionária, sem deixar de ser acessível: restituirá os textos, livres de emendas abusivas que todos fazem ou admitem; apresentará os apócrifos que merecem ser conhecidos (e sobre os quais o meu método lança alguma luz); arrumará os textos segundo as edições sucessivas em que foram aparecendo, e não por classificações arbitrárias, etc, etc. Será só da obra lírica, com exclusão da epopeia, do teatro e das cartas. Ulteriormente, farei os autos e as cartas. E espero poder fazer Os Lusíadas também. Viu você, no no. 21-22 da Revista do Livro, o meu estudo (a primeira parte) da estrutura deles? A segunda parte está entregue – mas sabe Deus quando sairá novo número da Revista. O Mayer vai para Espanha (que diabo de gosto, nesta altura…), e quem lhe sucederá ? Na segunda parte, apresento as equações, muito simples, que regulam entre si as extensões dos dez cantos, e em relação com certos números mágicos, como seria de esperar que acontecesse com poema tão ambicioso!

Quanto ao Petrarca, muito me alegra ter confirmado a sua opinião (quando foi que saiu a entrevista de 1959, em que você me fala? – depois de eu ter partido para cá, em agosto, pois que não me lembro dela?). A independência do nosso poeta é total – o que não ocorre a quem não leu nunca o Petrarca. E ele é maior que o Petrarca — o que não ocorre a quem nunca o leu a ele. Em ambos os casos estão os eruditos de Camões, com a agravante de não serem poetas, a não terem cultura geral, e não perceberem nada de poesia.

Mas eu já sei de antemão que, sobre a minha edição, cairá um silêncio de ferro: único refúgio das incompetências que, em Portugal e no Brasil, se ocupam catedraticamente de literatura portuguesa. O mesmo sucederá com os meus Estudos de História e de Cultura, que começaram a ser publicados em Lisboa, na revista Ocidente, e tratam sucessivamente da família europeia de Afonso Henriques(com uma multidão de gente dos séculos X a XIII), de Filipa de Lancastre à luz da sua criminosa família inglesa), dos painéis ditos de Nuno Gonçalves que concluirão com um magno estudo sobre a formação do mito de Inês de Castro, desde a morte dela até Camões, como análise histórico-sociológica, e com a análise estrutural de todas as grandes obras que formaram o mito. Precisamente a inclusão deste magno estudo é o que mais me ocupa agora.

Dará, no fim, tudo isto um volume de 300 páginas. Acrescente você a estes trabalhos a conclusão da edição (texto inglês e tradução em verso, com prefácio e notas e variantes) dos Poemas Ingleses do Fernando Pessoa, a preparação da publicação do monumental inédito de Pessoa, o Livro do Desassossego (a prosa do “Bernardo Soares”) e diversos outros e sortidos estudos pendentes, e veja o que está ameaçado pela indústria ocidental do anticomunismo… Começo a crer que a Itália ainda é o único país do mundo onde se pode viver. Será mesmo?

Deve você estar prestes a receber, na lentidão do correio marítimo, a minha História geral da Literatura Inglesa, imenso e compacto catatau de 500 páginas, sonho de 25 anos, que finalmente pude redigir e acata de sair em São Paulo. Vai desde as origens até 1960. E – além de não haver nenhuma outra em português – a primeira escrita de um ponto de vista histórico-sociológico, e com compreensão correlativamente estática dos autores e das obras. Será que apareceria possibilidade de uma edição italiana dela (em que eu alteraria as referências de literatura comparada, acentuando mais as aproximações italianas)?

Espero que até ao fim do ano saia em Portugal, embora não na edição que eu desejava e falhou, o meu próximo livro de poemas: Metamorfoses. São 21 poemas muito longos, sobre obras de arte ou coisas parecidas, e creio que será, por eles e no conjunto, o meu livro mais importante. A ideia primitiva era um álbum de arte, com as reproduções a cores, quando fosse o caso. Sairá sem cores editado pela Morais. Entre dois poemas de grande violência pagã (e seguidos de quatro sonetos experimentais que não sei se você terá visto na revista dos concretistas paulistanos), estarão: Gazela da Ibéria (uma esculturinha pré-histórica), Demeter de Cnido, Cabecinha romana (que está no Museu do Faro, em Portugal), Artemidoro (uma tampa de caixão do Egito cristão-copta), Mesquita de Córdova, Nave de Alcobaça, Pietá de Avignon, Cáfalo e Prócris (do Cosimo), Retrato de um desconhecido (das Janelas Verdes, em Lisboa, dos chamados primitivos pelo especialista de vias-urinárias, Reinaldo dos Santos), Camões dirige-se aos seus contemporâneos (a cabeça do Bruno Giorgi), Eleonora di Toledo, Granduchessa di Toscana (do Bronzino, na Wallace Collection, de Londres), A Morta (de Rembrandt, no Museu Real de Bruxelas), O Balouço de Fragonard, Turner, A Cadeira Amarela de Van Gogh, Ofélia (meditação shakespeariana, sobre um quadro que possuo do surrealista português Fernando Azevedo), Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya (que você terá visto no Estadão, há anos), A Máscara do Poeta (a lifemask do Keats, que vi em Londres),A Morte, o Espaço e a Eternidade (longa meditação que não sei se você terá lido, naquela Távola Redonda que em Lisboa, a grande e querida Sophia agora dirige. É mais de um milhar de versos, meditando sobre tudo e mais alguma coisa, mas sobretudo sobre a morte mesmo. Espero que esse livro corresponda às palavras generosas e amigas que você, na sua carta, dedica à minha poesia, e que eu bem desejaria que fossem verdade, não por mim, mas por tudo o que essa poesia tem, por dignidade de missão, ambicionado ser. Porque pode ter interesse italiano (em breve sairá em São Paulo um meu ensaio sobre Maquiavel…), junto lhe mando o poema da Eleonora de Toledo, em que procuro retratar o “maneirismo” como época histórica, sem me afastar da figura da mulher de Cosme de Médicis, como a viu o Bronzino.

O que eu poderia fazer, meu querido Murilo, com algum sossego, alguma segurança, algum reconhecimento público… Mas será que faria mesmo? Que não nasci para me indignar com tudo, e incomodar toda a gente? Já tenho idade para saber; mas ainda não sei…

A Mécia e eu mandamos para Saudade e para você as mais saudosas e amigas lembranças.