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Charlot, Hoje e Sempre

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Podemos dizer que foi com o genial Charles Chaplin que Jorge de Sena se iniciou na crítica cinematográfica… De fato, o texto abaixo é o seu mais antigo comentário sobre a “sétima arte” e foi publicado há 65 anos no Mundo Literário nº 11, de 20 de julho de 1946. Quando, em vários pontos do planeta — inclusive no Brasil — são agora festejados os 80 anos de “City Lights”, julgamos oportuno aqui evocar o eterno Carlitos/Charlot, cuja figura, aos olhos de Sena, “pertence, hoje, ao chamado património espiritual da humanidade”.

 

Estão em exibição, no Condes, cinco sextas partes de um dos filmes organizados na América para o «Festival de Charlot». Composto por seis shorts, com numeração por capítulos — 1, 2, etc. — ali e agora, começa no segundo. Felizmente, entre as exibidas, contam-se The adventurer (O evadido — título português), The cure (No balneário) e Easy Street (Na Rua da Paz), todas muito importantes na história do Cinema, nomeadamente a última que é daquelas em que já com nitidez, principia a desenhar-se o típico Charlot, cuja figura pertence, hoje, ao chamado património espiritual da humanidade.

De facto, seis fitas de Charlot podiam ser demais para quem está habituado ao cómico antisséptico do moderno cinema americano. Além de que o Condes, que teve durarate o ano, tanta coisa a exibir (até um Barbeiro com um D. Basílio, não se sabe por que ironia do destino, travestido de comilão), devia realmente guardar para esta altura aquele cinema de há trinta anos — não fosse a gente ficar sabendo que não suava de riso mas do calor da sala.

Nos tempos do mudo, havia pequenas ou grandes orquestas para encher os ouvidos do público. E também, para um ou outro ruído mais fácil de imitar a tempo. Lembro-me do Ben-Hur, no Odéon, com a batalha naval acompanhada a bombo e pratos, enquanto o resto da orquestra tocava, por exemplo, o fragmento sindbádico da Scheherazade, ou coisa assim marítima. Nem por isso, pelas próprias necessidades da exposição mímica, as fitas eram menos mudas. Mas só o sonoro permitiu apreciar a importância espectacular de um silêncio ou de um pequeno ruído, mesmo da ressonância, em termos que ao teatro, fundamentalmente presença humana, não podiam interessar.

Estes filmes de Charlot reaparecem com acompanhamento musical, e uma sonorização discreta apenas para sublinhar o cómico de certas cenas. No Emigrante, a sequência dos soluços, que, na sua época, valia só pelo crescendo do ritmo alternado, é valorizada por sons de apito. Mas, em Na rua da paz, já me parece que as pancadas de «casse-tête» na cabeça do brutamentes seriam dantes mais cómicas na sua ineficiência silenciosa, que hoje estrelejando impotentes.

O público, porém, ri, creio eu, como o de há trinta anos. E alguns dos «gags» — gastos e regastos em sucessivas farsas de outros cómicos! Mas estão ali, e é uma das vitórias de Charlot, tão natural e indispensavelmente incluídos na narrativa, que o público, sem dar por isso, ri mais da história que lhe contam do que dos acidentes dessa mesma história. Depois, hoje as fitas cómicas (e não falo na «comédia burguesa») têm, quando têm, um argumento frágil. E estas farsas de Charlot são solidamente construídas, desenvolvendo-se com a lógica própria da grande farsa, mesmo quando parecem despretenciosas, mesmo quando a técnica afrouxa por não se reduzir ao essencial.

No entanto, esta redução ao essencial — como aponta Roger Manvell, referindo-se precisamente a The cure e Easy Street — foi sempre uma das características técnicas dos filmes de Charlot. E a frouxidão só se manifesta no desequilíbrio resultante da demora desproporcionada neste ou naquele «gag». Mas convém notar que é dificílimo, com «gags» de repetição e em fitas curtas, conseguir o equilíbrio. É assim que se alonga demasiado a sequênoia dos banhos forçados no Evadido, enquanto no Falso conde é um prodígio de espírito a passagem, sempre despropositada, da mulher mascarada de marroquina ou lá que é, e cujas intervenções culminam na cena do peru enfiado na bengala e atirado à cabeça do criado. Há aqui uma ousadia que o cinema americano, esmagado pelo código Hays, teria, depois, de abandonar. E o que se segue — Charlot enleado e jogando o golf com o pudim — é já um luxo de expressão que mais vinca a comicidade expontânea do momento anterior.

Disse que o público ria como o de há trinta ou vinte e cinco anos. E talvez ria mais. Porque ri, também, da velocidade inverosímil dos movimentos (os realizadores de hoje ainda sabem que é assim) e da própria mímica, natural então, como riria se, em vez de Charlot, lhe dessem um drama de Bertini, um daqueles que desfazia em lágrimas os corações mais empedernidos do seu tempo. Todavia, o próprio Charlot explorou habilmente essa rapidez resultante, na projecção, do menor número de imagens pela câmara fixadas na unidade de tempo. As cenas de perseguição em O evadido e as da luta com o maçagista em No balneário são, ainda hoje, um modelo de comicidade por rapidez. De resto, o talento de bailarino não é um dos menores em Charlot. O ritmo de The cure é de bailado: e o filme tem cenas puramente dançadas. E há bem pouco, em O Ditador, o «solo» com o balão-esfera terrestre — uma das cenas mais excepcionais do filme — valia, principalmente, pela esplêndida marcação caricatural dos movimentos.

É hoje tão insuportável ver um filme antigo, como ouvir música por um receptor de má selectividade. Mas Charlot, que sempre se serviu da técnica para fins de expressão, e a transcendeu sempre — raro o cinema terá atingido uma elevada dignidade visual e auditiva, como no Ditador, com o contraste entre o discurso onomatopaico e a nobre alocução final — aí está vivo, não curiosidade histórica, acessório de uma erudição que o cinema já está possibilitando, mas verdadeira arte: como um grande livro imperfeitamente impresso.

Ainda uma observação importante. Para muita gente será desconcertante o Charlot destes filmes. De facto, e principiei por tal acentuar, o Charlot da Quimera do Oiro, do Circo e das Luzes da Cidade, só raras vezes neles aparece explicitamente. Há, sim, desde logo uma figura — mas adaptada à aventura que está vivendo: Charlot aqui, Charlot acolá, Charlot isto ou aquilo. O jogo fisionómico admirável do aventureiro (o evadido) é muito sintomático. Mesmo a «figura» é, quase sempre, a de um espertalhão bem sucedido. Compreende-se que, após os grandes filmes que consagraram o tipo, apenas pela dualidade tenha Charlot podido resolver os problemas levantados pelo Ditador. Ainda com desenlace feliz — «happy end» — já o tipo se desenha em O emigrante e Na rua da Paz. O sonhador miserável, distraído e altruista, embora depene ao jogo os companheiros de viagem, já vai a bordo daquele navio com rumo a Nova-Iorque. E a ironia trágica também: a contemplação embevecida da Estátua da Liberdade é violentamente quebrada pela corda com que os funcionários da emigração encurralam os emigrantes… Easy Street, àparte a gratuita comicidade de jogo de polícias e ladrões, é uma vigorosa sátira social, a que nem falta um corajoso realismo (aliás este último sempre presente nos filmes de Charlot): veja-se como são, de facto, miseráveis os «interiores». O final da fita é o salto para a caricatura dos ideais de «respeitabilidade» — a rua redimida por Charlot-polícia e namorado da missionária, os moradores, pretenciosamente vestidos, cumprimentando-se muito delicados, passando as esposas para o lado de dentro do passeio… O Charlot que toda a gente conhece ainda não é bem aquele do Condes. Veio depois, com amargura, com desespero, com cenas, comoventes para rir. Mas o que ali está, já sua obra magnífica, é, pela riqueza expressiva, do melhor que o cinema tem dado. Sinceridade, independência, honestidade de factura, verdadeira originalidade não se encontram, assim, nem todos os dias nem em todas as artes.