Cidadão brasileiro vivendo nos Estados Unidos, Jorge de Sena recebeu a notícia do 25 de Abril como o intelectual português que era: com euforia no primeiro momento, logo substituída pelas dúvidas do espírito crítico. Da feliz utopia de uma nação livre, à constatação de que muito trabalho restava por fazer, a poesia de Sena conclui: “quem te amar, ó liberdade, tem de amar com paciência”.
* “Com que então libertos, hein?…”
* Poema de 28 de Maio ao contrário
Nunca pensei viver para ver isto: a liberdade — (e as
promessas de liberdade) restauradas. Nâo, na verdade,
eu não pensava — no negro desespero sem esperança
viva — que isto acontecesse realmente. Aconteceu. E
agora, meu general?
Tantos morreram de opressão ou de amargura, tantos se
exilaram ou foram exilados, tantos viveram um dia-a-
dia cínico e magoado, tantos se calaram, tantos
deixaram de escrever, tantos desaprenderam que a
liberdade existe — E agora, povo português?
Essas promessas — há que fazer depressa
que o povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que nelas, porque elas só nele se realizam
e por ele. Há que, por todos os meios,
abrir as portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos
E agora, meu general?
E tu povo, em nome de quem sempre se falou, ouvir-se-á a
tua voz firme por sobre os clamores com que saúdas as
promessas de liberdade? Tomarás nas tuas mãos, com
serenidade e coragem, aquilo que, numa hora única, te
prometem? E agora, povo português?
SB. 27/4/1974
Com que então libertos, hein? Falemos de política,
discutamos de política, escrevamos de política,
vivamos quotidianamente o regressar da política à posse de cada um,
essa coisa de cada um que era tratada como propriedade do paizinho.
Tenhamos sempre presente que, em política, os paizinhos
tendem sempre a durar quase cinquenta anos pelo menos.
E aprendamos que, em política, a arte maior é a de exigir a lua
não para tê-la ou ficar numa fúria por não tê-la,
mas como ponto de partida para ganhar-se, do compromisso,
um boa lâmpada de sala, que ilumine a todos.
Com o país dividido quase meio século entre os donos da verdade e do poder,
para um lado, os réprobos para o outro só porque não aceitavam que
não houvesse liberdade, e o povo todo no meio abandonado à sua solidão
silenciosa, sem poder falar nem poder ouvir mais que discursos de salamaleque,
há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política.
Não apenas pelo prazer tão grande de poder falar livremente
e poder ouvir em liberdade o que os outros nos dizem,
mas para o trabalho mais duro e mais difícil de — parece incrível —
refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só
da energia represa há tanto tempo. Porque é belo e é magnífico
o entusiasmo e é sinal esplêndido de estar viva uma nação inteira.
Mas a vida não é só correria e gritos de entusiasmo, é também
o desafio terrível do ter-se de repente nas mãos
os destinos de uma pátria e de um povo, suspensos sobre o abismo
em que se afundam os povos e as nações que deixaram fugir
a hora miraculosa que uma revolução lhes marcou. Há que caminhar
com cuidado, como quem leva ao colo uma criança:
uma pátria que renasce é como uma criança dormindo,
para quem preparamos tudo, sonhamos tudo, fazemos tudo,
até que ela possa em segurança ensaiar os primeiros passos.
De todo o coração, gritemos o nosso júbilo, aclamemos gratos
os que o fizeram possível. Mas, com toda a inteligência
que se deve exigir do amadurecimento doloroso desta liberdade
tão longamente esperada e desejada, trabalhemos cautelosamente,
politicamente, para conduzir a porto de salvamento esta pátria
por entre a floresta de armas e de interesses medonhos
que, de todos os cantos do mundo, nos espreitam e a ela.
SB, 2/5/1974
Poema de 28 de Maio ao contrário
Gigante foi a luz que acesa se estendeu por sobre as
trevas de um povo prisioneiro.
Ninguém esperava que no primeiro impulso
de um movimento militar se abrissem todas as janelas
e todas as portas. Mas abriram-se e por elas a luz e
as vozes foram restituídas.
Todos agora, exército e povo, os militares e os politicos, e
quantos nunca pensaram que a política é coisa
de todos os dias ter de aprender-se a ver, a falar
e a ouvir, lá onde na caverna
só sombras de fantasmas existiam.
Todos têm de aprender a governar e a governar-se n’alma
e a fazer governo a liberdade e as vozes e o
direito de existir-se à luz do dia
como gente viva num país que é ela.
Todos têm de aprender que a liberdade não existe
apenas porque é dada, pois pode ser tirada, ou
apenas porque é conquistada, pois pode ser
licença em que não reste senão ela perder-se. Têm de
aprender que não pode ter-se num só dia
o que se perdeu em décadas. E que a Justiça
é a Liberdade que pensa mais nos outros que em si mesma.
Santa Bárbara, 28/5/1974
Da prisão negra em que estavas a
porta abriu-se p’ra rua. Já sem
algemas escravas, igual à cor que
sonhavas, vais vestida de estar nua.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Na rua passas cantando, e o
povo canta contigo. Por onde
tu vais passando mais gente se
vai juntando, porque o povo é
teu amigo.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Entre o povo que te aclama,
contente de poder ver-te, há gente
que por ti chama para arrastar-te na
lama em que outros irão prender-te.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Muitos correndo apressados
querem ter-te só p’ra si; e gritam
tão de esganados só por tachos
cobiçados, e não por amor de ti.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Na sombra dos seus salões de
mandar em companhias,
poderosos figurões
afiam já os facões
com que matar alegrias.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
E além do mar oceano o maligno
grão poder já se apresta p’ra teu
dano, todo violência e engano,
para deitar-te a perder.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Com desordens, falsidade,
economia desfeita; com
calculada maldade, promessas de
felicidade e a miséria mais
estreita.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Que muito povo se assuste,
julgando que és culpada, eis o
terrível embuste por qualquer
preço que custe com que te
armam a cilada.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Tens de saber que o inimigo
quer matar-te à falsa-fé. Ah tem
cuidado contigo; quem te
respeita é um amigo, quem não
respeita não é.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
Santa Bárbara, 4/6/1974
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
Sonhou-se tanto contigo sem saber
como saber-te, que é muito grande o
perigo de não ver o sonho antigo nos
braços em que hão-de ter-te.
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
Alguns tão livres te querem que
só desordem restava. Outros tal
ordem preferem que de tanto que
a referem o velho tempo voltava.
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
Tantos, tantos se proclamam teus
amantes confessados, que os que em
verdade te amam mal se ouvem
quando te aclamam, nem por teus
serão contados.
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
Riqueza querem de ti, sem pensar
como fazê-la. Mas muitos que
sempre vi engordando por aí são
quem contínua a tê-la.
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
E a paz? Contaram contigo para
assiná-la num instante. Mas quem é
mais teu amigo sabia-a duro castigo
que só o tempo garante.
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
Independência, há que dá-la às
colónias de ultramar. Mas uma
coisa é falá-la e muito outra o
prepará-la já tendo que governar.
Quem te amar, õ liberdade, tem
de amar com paciência.
Amem-te quantos não pedem que
sejas mais que teu ser. Amem-te
quantos te medem pelo que eles
mesmos concedem à tua força de
viver.
Quem te amar, ó liberdade, tem
de amar com paciência.
Cada dia há que fazer-te contra os
costumes de outrora. Cada dia há
que entender-te, que perder-te e
reaver-te numa luta a toda a hora.
Quem te amar, ô liberdade,
tem de amar com paciência.
Para a nação reformar,
trabalhem governo e povo. E
que ajunta militar lhes proteja
o caminhar: liberdade, país
novo.
Santa Bárbara, 29/6/1974