Atribuindo ao poeta das Metamorfoses o papel de “figura tutelar” da poesia portuguesa contemporânea, Eduado Prado Coelho recorda que “Sena abriu um hábito e uma prática de convívio entre as diversas áreas da actividade artística” (entre a poesia e as artes plásticas… etc.). Noutro viés inaugural, afirma que Sena inova a “linguagem da sexualidade” e aponta na sua poesia “um acentuar da sexualidade como deambulação e demanda, isto é, como viagem do sujeito no interior de si mesmo e do mundo”. Decerto essas duas linhas de força cruzam-se no ensaio inédito de Jorge Valentim, que temos a primazia de editar.
Este texto é para Gilda Santos, mestra de olhar sensível, com quem aprendi a ler Jorge de Sena para nunca mais me esquecer, nem do autor que ele foi e nem da intelectual generosa que ela é.
Reclusa a vida em poesia, não para tirá-la da Vida, mas para encerrá-la dentro do mundo da transfiguração poética, o único capaz de abarcar inteiramente tudo, compreendendo tudo, fitando tudo, aceitando tudo, menos aquilo que diminua a liberdade da criação, que o mesmo é dizer a liberdade do ser humano, recluso em poesia, para não poder fugir de maneira alguma para os campos da maldade e da infâmia, da mesquinhez e da vileza, aonde tanto tem andado à solta neste mundo que perdeu o sentido do que necessita ganhar de novo. [Jorge de Sena. Poesia – III.]
De maneira geral, quando um ensaísta se debruça sobre um autor ou um texto, não deixa de habitar no imaginário do intelectual uma certa pretensão em tentar refletir sobre um aspecto ainda não trabalhado ou pouco referenciado no seu objeto de estudo. Por esta linha de raciocínio, qual seria, então, a reação de um estudioso (ou melhor, de um curioso, como é mais o meu caso) da obra de Jorge de Sena ao se defrontar com um universo multifacetado, com uma amplitude galáctica de gêneros, onde alguns de seus temas já receberam atenção analítica com a profundidade exemplar que a sua obra comporta?
A primeira resposta seria a dificuldade de não resvalar numa certa tautologia. Mas, eis que são tantos e múltiplos os temas, os gêneros, as formas, as reflexões e as ideias do escritor, que, num dado momento, algo surge como elemento pouco explorado, propiciando uma oportunidade de reflexão, ainda que o eixo temático utilizado já tenha sido alvo de outras investigações.
Todo este meu deambular inicial se justifica pelo tema que me traz à poesia de Jorge de Sena. Dizer que o erotismo e, mais especificamente, o homoerotismo [1] nela ainda não foram observados seria, no mínimo, inverídico e injusto com uma fortuna ensaística que inclui nomes como Eduardo Prado Coelho (1984), Jorge Fazenda Lourenço (1991), Márcia Vieira Maia (1996), Eduardo Pitta (2003) e António Manuel Ferreira (2008) apenas para ficar nos mais evidentes. Mas, é exatamente esse eixo de leitura que me leva ao poema “Ganimedes”, epílogo de Peregrinatio ad loca infecta, e a algumas ocorrências homoeróticas altamente sugestivas que ali se encontram.
Ainda que a obra de 1969 já tenha sido alvo de estudos divulgados pela mídia editorial, é interessante observar a quase obnubilação por que passa este poema [2]. O objetivo aqui não é o de buscar razões ou levantar hipóteses desta desatenção, mas resgatar, trazer à cena, talvez um dos mais belos poemas da pena seniana em que o homoerotismo aparece de maneira sensível, sugestiva e, ao mesmo tempo, pungente. Daí que o título deste ensaio, “Sob o véu de Ganimedes ou as configurações homoeróticas na poesia de Jorge de Sena”, não só antecipa uma revisitação ao poema, como resgata o pensamento de Jorge Fazenda Lourenço, quando defende a tese de que
Um dos propósitos da obra de Jorge de Sena é, precisamente, o de desocultar, desvendar, descobrir a realidade, no sentido de levantar o véu ou o manto, mais ou menos diáfano, feito de regras e preceitos, com que tapamos a nossa realidade, colectiva ou pessoal, com que, no fundo, damos alguma segurança e aconchego ao nosso incerto existir quotidiano. E de tal modo que é como se nos deparássemos com um excesso de realidade, na medida em que deixamos de ter uma visão de superfície para, com o poeta, exercermos sobre ela, realidade, uma visão profunda (2002, p. 58).
Neste sentido, o meu propósito é o de tentar acompanhar a (re)leitura que Sena faz do mito de Ganimedes, desvendando, descobrindo sob o manto e revelando a “visão profunda” (Ibidem) do poeta sobre um tema que faz parte do dele e do nosso “existir quotidiano” (Ibidem). Escrito em 1969, mas sem dia ou mês precisos – pelo que nos sugere a indicação de Mécia de Sena (1990, p. 73) –, o poema resgata o mito de Ganimedes, o rapto do jovem efebo por Zeus e a sua ascensão para o Olimpo, como servo da sede maior do panteão grego. Ora, o fato de retomar um dos mitos mais conhecidos por onde o homoerotismo invade a morada dos deuses, exatamente no ano de 1969, época em que Jorge de Sena já se encontrava nos EUA, desempenhando as funções de professor na Universidade de Wisconsin, alimenta a imaginação do mais despretensioso leitor de sua obra. Isto porque o ano de sua escrita coincide (será mesmo coincidência?) exatamente com o da revolta de Stonewall [3], mas afirmar que tal poema poderia ter sido uma reflexão do escritor português, em consequência de um evento que consolidou a visibilidade e a legitimidade da reivindicação dos direitos civis LGBT, talvez seja temerário demais, até porque não encontramos fundamentação temporal que confirme nossa hipótese. No entanto, é inegável que a vivência de Jorge de Sena no país onde estas questões se desencadearam de forma pública e notória aparece em outros de seus poemas, sobretudo em alguns datados posteriormente a junho de 1969 (cf. neste sentido, os de América, América, I love you). Daí que, se é possível pensar Jorge de Sena como um artista que nunca se furtou a expressar poeticamente a sua posição em relação a certos eventos que marcaram a sociedade onde habitou durante anos – repare-se, neste sentido, a perspicaz leitura que Jorge de Sena faz da Guerra do Vietnã, por exemplo, no poema “Os prazeres da juventude” (SENA, 1980, p. 106), datado de 13 de outubro de 1969 e inserido em Sequências –, seria ingênuo simplesmente considerar que, reconhecido pelo seu olhar agudo, ele passaria de forma ilesa por um acontecimento tão marcante nos cenários norte-americano e mundial.
E, ainda que não tenhamos dados concretos sobre a relação de certos poemas de temática homoerótica de Jorge de Sena com os eventos de 1969, vale lembrar, que, mesmo antes desta data, Jorge de Sena nunca se negou a tratar de assuntos que estivessem ligados à existência humana, numa generosa atitude de expressão de conhecimento, que ele próprio deixaria registrada, mais tarde, quando da publicação da 2ª. edição de sua Poesia-I:
Moralmente falando, sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para patriarca, e sempre foi a favor de a mais completa liberdade ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hiper-sensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém (1977, p. 19).
É, portanto, graças a este sentimento de exercício de liberdade plena em todos os níveis da existência humana, que aquela “visão profunda” (LOURENÇO, 2002, p. 58) de Jorge de Sena abrange diversas áreas do conhecimento, incluindo aí o homoerotismo em “todas as formas de amor e de contacto sexual” (SENA, 1977, p. 19). E esta aposta não quer dizer necessariamente que o autor tivesse alguma participação pessoal em movimentos militantes ou envolvimentos afetivos que comprometessem a sua abordagem. Neste sentido, vale lembrar a singularidade do autor de Sinais de fogo no tratamento do tema, conforme sublinhado por Eduardo Pitta. Segundo o ensaísta,
[…] Sena escreve sempre de um ponto de vista heterossexual, e nem por isso a sexualidade por si ficcionada se esquiva à tensão homoerótica, definindo inequivocamente o enfoque do texto. É sabido que a história das minorias se faz muitas vezes do lado das maiorias (ressalve-se que não exonero as minorias da construção das respetivas identidades). Neste domínio, é indispensável sublinhar o contributo de Sena para a fixação de uma homotextualidade portuguesa (2003, p. 16).
Ou seja, muito diferente de se portar de forma silenciosa ou, ainda, segregadora, o gesto crítico de Jorge de Sena não exclui a pesquisa sobre um determinado viés de leitura, só porque este não faz parte de um elenco academicamente correto e aceito pelo statu quo instituído. E o seu interesse sequer compromete a sua postura como ser humano e intelectual, já que o próprio Sena chama a atenção para esta característica da sensibilidade criadora, quando analisa a presença dos “complexos de castração” (1978, p. 195), na poesia de François Mauriac [4]. Se o homoerotismo faz parte da “vivência humana” (Ibidem), e esta é a que mais interessa ao poeta-ensaísta, jamais ele se portaria de maneira excludente diante daquilo que é do seu conhecimento e que faz parte das múltiplas experiências vivenciadas pelo homem. Atrevo-me, aqui, seguindo esta perspectiva de ler o pensar poético seniano e o seu diálogo com as formas de ser e estar-no-mundo do homem, a comparar esta limpidez do seu observar com aquela nitidez presente em certos versos de Fernando Pessoa – poeta que Sena também conheceu profundamente e decerto nele bebeu alguma influência –, sobretudo os de algum Alberto Caeiro, com o seu olhar “nítido como um girassol” (PESSOA, 2012, p. 81). Ao se debruçar sobre o homoerotismo, Jorge de Sena destitui-se de qualquer postura discriminadora e postulante de um cerceamento da liberdade de expressão ou de uma investida puramente militante, e pensa esta experiência, tal qual o poeta de “O guardador de rebanhos”, com “[…] os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca” (Ibidem, p. 90). Enfim, com seu “corpo deitado na realidade” (Ibidem), parece que o autor de “Ganimedes” também sabe a verdade e mostra de maneira generosa as múltiplas formas possíveis de ser feliz.
A sua vasta biblioteca, aliás, também contribui para reiterar a convicção de que o homoerotismo desde cedo não lhe era alheio, visto que, de acordo com as informações de Jorge Fazenda Lourenço (2002), até 1942, títulos como os de André Gide (Le retour de l’enfant prodigue e L’immoraliste), António Botto (Baionetas da morte, Canções, Ciúme, Sonetos e 9 de abril), François Mauriac (Genitrix, Le désert de l’amour e Le fleuve de feu) e José Régio (António Botto e o amor), que abordavam direta ou indiretamente o tema aqui tratado, faziam parte do acervo seniano. Se observarmos, ainda, a produção de Jorge de Sena antes, e mesmo depois, de 1969 [5], não será difícil constatar que, realmente, se trata de um dado confirmado. Basta lembrar, neste sentido, algumas passagens da ficção, do ensaio, da poesia (sua e traduzida) e da epistolografia em que o homoerotismo comparece como matéria latente (ou, mesmo, sugerida), como, por exemplo, na tradução dos poemas de Constantino Cavafy, em que o desejo homoerótico destila livremente pelos versos do poeta grego (trabalho iniciado em “1952-53, em 1962, e em 1968-69, quando as anteriormente feitas foram todas novamente revistas”; SENA, s.d., p. 11 [6]); a pontual inserção em antologias organizadas e o estudo sistemático de obras de poetas portugueses como António Botto, Raul Leal e Eugénio de Andrade, artistas declaradamente homossexuais (como na 1ª. impressão de suas Líricas Portuguesas, em 1958 [7], e em ensaios, como “Observações sobre As mãos e os frutos, de Eugénio de Andrade”, de 1970, incluído em Dialécticas aplicadas da literatura); a significativa, mas pouco lembrada, correspondência mantida com Raul Leal, as queixas deste diante da incompreensão de editores e leitores e a visão sempre sutil de Jorge de Sena em apontar o incômodo que certos artistas causam ao farisaísmo social (nas cartas escritas entre 1957-1960) [8]; a violenta vingança do marinheiro Bravo em forma de posse forçada sobre um dos camaradas do navio, identificado sempre como o detestado (no conto “A Grã-Canária”, em Os grão-capitães, de 1961); o Diabo com o físico antes de seus banhos (em O físico prodigioso, de 1964); as constantes indagações de Jorge diante dos olhares e dos gestos ambíguos e declarados, respectivamente, de Rodrigues e Rufininho (em Sinais de fogo, romance inacabado, escrito a partir de 1964); o tratamento dado à homossexualidade e à “exploração de uma perversidade íntima que coabita humanamente com as chamadas virtudes cristãs” (SENA, 1978, p. 192), quando de sua análise de um poema de François Mauriac (em “O sangue de Átis”, de 1965, ensaio incluso em Dialécticas aplicadas da literatura); a sua fina percepção crítica na escrita do verbete “Amor”, ao lembrar casos tutelares de “uma liberdade mais ampla de temas sexuais” (SENA, 1992, p. 58) na literatura portuguesa, como Abel Botelho, por exemplo, ou, ainda, as ocorrências significativas nos homens da geração de Orpheu, como Fernando Pessoa e António Botto (verbete inserido no Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, projeto de João José Cochofel, lançado a partir de 1969, mas inconcluso); as cenas do cotidiano nos EUA, reunidas no seus poemas-testemunho de América, América, I love you, onde o leitor se depara com orgias convidativas, festas com bêbados e falsos bêbados, convenientemente esquecidos da noite anterior, corpos que se despem embaixo dos lençóis mas que se desnudam em piscinas e engates entre homens nos banheiros (textos datados entre 1961 e 1970 e reunidos no título póstumo Sequências, de 1980); ou, ainda, a sugestiva paisagem dos “Ambíguos corpos, sexos vacilantes” (SENA, 1989, p. 235), que, numa simbiose imagética, sugere a realização de um pan-erotismo (em Sobre esta praia. Oito meditações à beira do Pacífico, de 1977).
É certo que outros títulos poderiam aqui ser mencionados, mas estes já bastam para se perceber as tonalidades com que Jorge de Sena retoma, pinta e realiza, com a sua variedade de cores, a sua mundividência (homo)erótica. Parafraseando o próprio crítico, quando de suas considerações sobre François Mauriac, podemos afirmar que, já para iniciar a leitura do poema em estudo, o que não há em Jorge de Sena é gesto despretensioso e inocente. Todas estas ocorrências nos sugerem que o tema nada continha de tabu para o autor e ele, com a sua fina sensibilidade de intelectual aberto às mais amplas gamas do saber, não se furtou a dele tratar nos seus variados textos.
Essa saudável não-inocência do gesto poético seniano aparece estampada no seu poema “Ganimedes”, epílogo de Peregrinatio ad loca infecta:
Os pensamentos pastam na verdura,
balindo mansamente em torno dele,
e o rio corre sussurrante em pedras
que as sombras do arvoredo fazem negras.
Numa árvore se encosta o torsoo magro
que os cotovelos finca nos erguidos joelhos,
enquanto as finas ancas pousam na verdura
e de uma sombra entre elas pende uma brancura.
Delicados e firmes, os lábios se contraem
na tersa flauta em que os seus dedos dançam
ao mesmo tempo segurando-a leves.
Quase é silêncio a curta melodia.
Do fundo e vítreo azul que imobiliza
o campo e o arvoredo, um ponto negro vem
crescendo em asas, garras, bico adunco
entreaberto à frente de sanguíneos olhos.
E adeja no alto, imensa e monstruosa,
uma ave gigantesca. Os pensamentos sentem-na,
que os faz fugir, dispersos, assustados.
A melodia se suspende. O pastor olha.
Numa surpresa vê que as asas se desabam
sobre ele, escurecendo e recobrindo tudo.
Quando abre os olhos, elas voam vastas
entre ele e o azul, e as garras pela cinta o cingem.
Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo,
e pontos brancos, vagos, são o seu rebanho.
O bico hiante à sua boca chega
numa doçura a atormentá-lo inteiro.
E a negridão se acende pouco a pouco
de um resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o rodeia e rasga de um calor ardente
em que o seu corpo avança como um róseo dardo.
Mas quem avança em quem? O deus se entrega,
ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?
Ou cada um se humilha à sujeição do outro.
E mais: sem que o soubesse, aquele humano estava
já destinado às garras longamente curvas?
Ou por acaso foi que o deus se apaixonou?
E essa paixão durou? E que destino teve
o rebanho dispersado em susto? E a flauta
que entre a verdura mal se vê, perdida?
E o corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto – o decisivo – não sabemos. (SENA, 1989, p. 109-110).
Dono de uma cultura ampla e invulgar, Jorge de Sena deixa uma marca perceptível na sua obra: seus textos estabelecem uma rede de informações com outros textos e outros discursos artísticos, exigindo do seu leitor uma postura sensível diante dos objetos reunidos e conjugados pelo poeta. Neste sentido, percebe-se no poema acima que o olhar engenhoso da pena seniana não se centraliza nas malhas biográficas dos personagens envolvidos, sobretudo o jovem Ganimedes, nem nas sequências narrativas que resultaram no gesto de Zeus, pois, vale a pena ressaltar, que todo o poema verbaliza uma ação específica nas trajetórias das duas entidades mitológicas: tão somente o rapto do pastor pela águia.
Ora, toda a sequência cênica induz o leitor a um diálogo intertextual com um vasto repertório iconográfico, que, ao longo dos séculos, inclui mosaicos greco-romanos, esculturas, desenhos e telas de pintores famosos como Michelangelo, Rembrandt, Rubens, Corregio, Gabbiani, Le Suer. Elejo, contudo, como paradigma para este diálogo preciso o famoso quadro de Rubens, “O rapto de Ganimedes” de 1636 (há outro de 1611), não apenas pela correspondência visual e mitológica que ambos os discursos estabelecem, mas também, e, sobretudo, pelas sugestões de uma forte sensualidade homoerótica, envolvendo o entrelaçamento dos dois agentes (Ganimedes e Zeus). Este entrelaçamento inicia-se a partir de expressões de um pensamento explicitamente dito e de um sugestivo não-dito que o poema anuncia ao longo dos seus versos.
A primeira pode ser detectada na sequência de epígrafes citadas por Sena, na página anterior ao poema. De Eurípedes a Goethe, passando pelo pensamento epigramático de Marcial, pelos versos seiscentistas de Philip Sidney e pela poeticidade anunciadora do Sturm und Drang de Goethe, Sena recupera intertextualmente quatro representações diferentes do personagem mitológico, para, em seguida, propor a sua metamorfose poética relativa ao jovem flautista [9]. Entre rios, árvores e um amplo gramado, Ganimedes paira na paisagem natural cercado por dois elementos distintos: de um lado, uma imagem representativa da racionalidade (“Os pensamentos pastam na verdura, / balindo mansamente em torno dele”; SENA, 1989, p. 109), e de outro, a sensibilidade da criação artística (“Delicados e firmes, os lábios se contraem / na tersa flauta em que os seus dedos dançam / ao mesmo tempo segurando-a leves. / Quase é silêncio a curta melodia”; Ibidem). Se, inicialmente, a postura do personagem aponta para uma passividade de total abnegação, tal morosidade parece dar espaço a uma atitude ativa de criação, e de caráter poético, visto que a flauta e as melodias que extrai do instrumento reivindicam o papel criador do seu executante [10]. Ou seja, exatamente na junção de pensamentos circundantes e de lábios contraídos, a melodia ganha corpo e se corporifica como matéria criada pelo músico. Não será, neste sentido, um caminho interessante para Sena apontar a concepção de que o gesto poético requer pensamento e, ao mesmo tempo, sensibilidade? Seu Ganimedes, deste modo, parece estar longe de ser definido como uma imagem puramente complacente e contemplativa, até porque, quando Zeus surge em forma de ave arrebatadora, o jovem encontra-se no ato de criação e execução de sua obra.
Já a segunda, mais implícita na elaboração do poema, estabelece aquela rede de “entrelinhas” em forma de “sobrelinhas”, na feliz expressão de Eduardo Lourenço, ou seja, de “nós de uma multiplicidade de referências” (1999, p. 46), que remetem tanto para a imagética mitológica da cena do rapto, quanto para as referências literárias diretas e indiretas que retomam e recriam a cena protagonizada por Ganimedes e Zeus. Vale lembrar aqui, que, para além das citações dos autores em epígrafe, o mesmo evento revisitado por Jorge de Sena remete novamente o leitor às artes visuais e ao quadro de Rubens e, por sua vez, ao tema da relação homoerótica e à sua ficcionalização pelo romance, como, por exemplo, o de Abel Botelho. Ora, não será gratuito o fato de que o único bem preservado pelo protagonista de O Barão de Lavos seja exatamente o quadro “O rapto de Ganimedes” que, numa articulação altamente irônica, aparece no momento em que o barão se encontra na sarjeta, completamente comprometido pela doença e pela degeneração física e moral. Mas, se para Abel Botelho, a cena do efebo e do deus grego reiteram um tema lido sob a ótica determinista de um naturalismo pouco positivo sobre a homossexualidade, não parece ser este o prisma de Jorge de Sena, empenhado em aumentar a sua rede de referências, ao revigorar nos seus versos o embate/enlace entre Ganimedes e Zeus.
São, enfim, referências que contribuem para compor aqueles “textos inumeráveis” no “concentrado de cultura humana” (LOURENÇO, 1999, p. 46), como bem demonstram as já mencionadas epígrafes, que é a própria escrita de Jorge de Sena. Este recurso de tessitura de entrelinhas, como o dirá Eduardo Lourenço (1999), não se trata, portanto, de uma mera citação ou de uma conveniência retórica, pois não dirá acertadamente o ensaísta português que Sena tinha verdadeiro “horror ao artifício”? (Ibidem, p. 49). Destarte, gosto de pensar que esta junção de intertextos literários e plásticos contribui não só para a compreensão daquela “consciência estética” (Ibidem) do autor de Peregrinatio ad loca infecta, mas também para a percepção das reflexões construídas por ele em torno do homoerotismo e das teias discursivas que o tema envolve.
Sem sombra de dúvidas, a escolha do protagonista do texto poético é já um gesto sintomático neste caminho de leitura, visto que, dentro da literatura e da cultura ocidentais, Ganimedes tem sido observado como “símbolo celeste do Eros homossexual” (LINGIARDI, 2002, p. 25), e a sua relação com Zeus tem sido postulada como uma junção de “polaridades psíquicas reunidas em um estado de tensão equilibrada” (Ibidem, p. 29), ou seja, o erótico, presente na relação deste casal, não tem a ver necessariamente com o sexual, mas constitui um fator importante de “valência da constelação puer-et-senex, que tão frequentemente é executado por meio das relações entre homens” (Ibidem). Tanto Jorge de Sena tinha conhecimento das revisitações ao tema e das implicações, que a figura de Ganimedes expunha, que ele próprio, nas suas “Notas a alguns poemas”, no final de Poesia-III, remete ao seu ensaio sobre o poema de François Mauriac (“O sangue de Átis”), escrito quatro anos antes do texto em estudo, onde por diversas vezes, explicita as nuances que as duas figuras mitológicas suscitam:
A ambiguidade da relação entre os dois actores – Zeus e Ganimedes – transforma-se assim na ambiguidade existente entre uma solicitude protectora e um chamamento juvenil. Na verdade, Zeus pegara Ganimedes distraído… – o que a cristianização do mito também não deixou de explorar (SENA, 1978, p. 201-201).
Se o fazer artístico paira na encenação de um Ganimedes flautista, cercado por pensamentos “balindo mansamente em torno dele” (SENA, 1989, p. 109) e por uma “curta melodia” (Ibidem) quase silente, este sofre uma suspensão quando “adeja no alto, imensa e monstruosa, / uma ave gigantesca” (Ibidem), percebida pelo pastor que, muito sugestivamente, deixa antever uma posse corpórea, repleta de inferências sensuais e eróticas. Mais uma vez, parece que Jorge de Sena prefere o não-dito à referência explícita, isto porque, ainda que a palavra “águia” não apareça no texto, o que poderia levar o leitor à imediata identificação desta com Zeus – e, note-se, que o nome deste também sequer é citado –, o poeta sabe da ligação entre o animal alado e a entidade mítica [11], além de sugerir de maneira muito sutil uma aproximação com a cena do quadro de Rubens. Mais ainda se levarmos em conta que, no quadro do pintor da escola flamenga, a aljava interposta entre o corpo da águia e do jovem sugere uma dupla leitura: tanto pode ser associada ao membro fálico do deus transformado em ave de rapina para raptar o seu objeto de desejo, quanto pode conotar a masculinidade viril de Ganimedes que seduz e atrai a atenção de Zeus. Por outro lado, recordando a tradição iconográfica de Eros, é inevitável a superposição deste Ganimedes e do deus do Amor, que tem nas setas o seu emblema mais notório.
Ora, também não é esta a dúvida argumentada pelo eu-poético nas oitava e nona estrofes? Não é a posse dos dois corpos sublinhada por atitudes ambíguas e recíprocas entre os dois agentes da cena? Neste sentido, Ganimedes parece estar longe de uma figura passiva e sem reação, diante do “bico hiante” que “à sua boca chega / numa doçura a atormentá-lo inteiro” (SENA, 1989, p. 109). Até porque se a mitologia incumbiu de dar a Zeus o papel de raptor e a Ganimedes a função de objeto arrebatado, a metamorfose poética de Sena aposta numa ambígua relação erótica entre os dois sujeitos envolvidos, visto que:
E a negridão se acende pouco a pouco
de um resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o rodeia e rasga de um calor ardente
em que o seu corpo avança como um róseo dardo.
Mas quem avança em quem? O deus se entrega,
ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?
Ou cada um se humilha à sujeição do outro? (Ibidem, p. 109-110).
Gosto de pensar que, nessa desestabilização de papéis sexuais definidos, Jorge de Sena lança mão de sua verve de poeta-ensaísta, colorindo o desejo homoerótico com tonalidades poéticas sugestivamente camonianas, posto que, não será pela virtude do seu muito imaginar que, aqui, “Transforma-se o amador na coisa amada” (CAMÕES, 1988, p. 90)? Colocados lado a lado, são dois corpos que se embatem, se entregam e se possuem mutuamente, sem que haja, necessariamente, um único polo responsável pela posse. Até porque, ao interrogar sobre quem se oferece a quem, quem viola o corpo de quem ou “quem é o senhor de quem”, não deixa o poeta de perceber na posse erótica que estimula tais indagações uma espécie de transfiguração do ato amoroso. É o próprio Sena, aliás, quem tece tal possibilidade interpretativa, no seu elucidativo Amor e outros verbetes:
O amor dos deuses do paganismo pelos humanos não existia realmente senão em formas expressamente eróticas, quando eles raptavam para si os indivíduos que por capricho amoroso distinguiam (a primeira e a última personalidade a quem isso aconteceu, no cristianismo, foi a Virgem Maria) – o que, como é fácil de ver, já representava uma transformação ao mesmo tempo da consciência temerosa do homem sujeito à arbitrariedade dos fenómenos naturais, e da sua consciência de indivíduo distinto do grupo humano. (1992, p. 41).
Ou seja, no lugar de apostar em papéis eróticos fixos e pré-concebidos entre dois seres masculinos de condições, gerações e faixas etárias diferentes, a representação do rapto de Sena parece arriscar naquela ambiguidade da relação entre o deus (imagem possível de um ser mais velho) e o jovem flautista (adequado à imagem do “adolescente ao serviço do adulto activo”; Ibidem, p. 34), posto que ambos contribuiriam para a ascese mútua de cada um, enquanto participantes deste jogo em que aquela “ética do desejo” (LOURENÇO, 1991, p. 109) constituiria a única regra possível. Aliás, é esta mesma que propicia a salutar dúvida, pois, se “cada um se humilha à sujeição do outro” (SENA, 1989, p. 110), não existe a possibilidade de haver espaços para hierarquias ou graus de importância de um sobre o outro. Ao contrário, neste transporte erótico, como bem explica Jorge Fazenda Lourenço, o que conta é a “total despossessão de si próprio” (Ibidem). Assim, se Ganimedes, ao ser raptado no arrebatamento das garras que “pela cinta o cingem” (Ibidem, p. 109) e no envolver das asas que “se desabam / sobre ele, escurecendo e recobrindo tudo” (Ibidem), passa por uma experiência sensual e sexual, cujos efeitos são vivenciados por um “calor ardente / em que o seu corpo avança como um róseo dardo” (Ibidem), representando aquela “consciência de indivíduo distinto do grupo humano” (SENA, 1992, p. 41), Zeus também reitera a metamorfose de sua dimensão deificadora para uma condição humana, sublinhando, de certa forma, aquela transformação da “consciência temerosa do homem sujeito à arbitrariedade dos fenómenos naturais” (Ibidem), afinal, como indagará o sujeito poético, não “por acaso foi que o Deus se apaixonou? / E essa paixão durou?” (SENA, 1989, p. 110).
Tal maneira de ler o “capricho amoroso” (SENA, 1992, p. 41) do deus olímpico sobre um humano distinguido por ele reitera de maneira visível a incidência do homoerotismo na poesia de Jorge de Sena, projetado numa das múltiplas formas possíveis de amor. Mas, se de amor abdutor no mundo mítico se fala e se de amor que causa metamorfoses nos sujeitos participantes deste jogo do desejo – homens e deuses se igualam, se entregam, se possuem e se interrogam mutuamente – se trata, não me parece arriscado afirmar que Jorge de Sena tenha plena consciência de que é sobre um amor homoerótico, de uma experiência erótica proibida e condenada pelas mentalidades conservadoras do seu (e, infelizmente, do nosso ) tempo, que ele verbaliza e poetisa. Esta hipótese mais se sustenta quando, ao lado das indagações suscitadas pelo eu-poético diante de corpos que ambiguamente se tocam e trocam praxis metamorfoseadoras, Ganimedes passa a ser representado como um sujeito fora do seu espaço de trânsito, deslocado do seu locus de permanência:
[…]
Quando abre os olhos, elas voam vastas
Entre ele o azul, e as garras pela cinta o cingem.
Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo,
E pontos brancos, vagos, são o seu rebanho.
[…] E que destino teve
o rebanho dispersado em susto? E a flauta
que entre a verdura mal se vê, perdida?
E o corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto – o decisivo – não sabemos. (SENA, 1989, p. 109-110).
Ainda que este afastamento, causado pelo rapto do jovem por Zeus, indique uma consequência inevitável da experiência erótica, não será possível também perceber um sensível distanciamento por conta de sua nova condição, de participante de um jogo cujas regras o assentariam numa posição socialmente deslocada? Vale lembrar, neste sentido, que o Ganimedes metamorfoseado neste poema de Sena, além de flautista e de sujeito homoerótico, também não deixa de vivenciar a condição de exilado, seja pela perspectiva geográfica, já que, à distância, contempla o rio, o seu rebanho (“Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo, / e pontos brancos, vagos, são o seu rebalho.”; SENA, 1989, p. 109) e a flauta, perdida em meio à paisagem (“E a flauta / que entre a verdura mal se vê, perdida?”; Ibidem, p. 110), seja pela perspectiva físico-corpórea, por onde uma nova (ou outra, quem sabe?) experiência se realiza, sem deixar, no entanto, qualquer tipo de verdade definitiva sobre as suas consequências: “E o corpo do pastor, que pensa agora? / Só isto – o decisivo – não sabemos” (SENA, 1989, p. 109-110).
Ou seja, longe de creditar o exercício poético como local de certezas absolutas e inquestionáveis, Jorge de Sena parece apostar na poesia como espaço possível de indagações e de reflexões sobre tudo o que diz respeito ao homem, às suas experiências e vivências. E se o seu Ganimedes fere, de certa forma, alguns modelos literários antecedentes, há-de se observar que o seu gesto efabulador, como disse no início, não é gratuito ou inocente. Destarte, justifica-se a presença deste poema na própria sequência de Peregrinatio ad loca infecta, porque também ele se apresenta como um texto “cheio de experiências e experimentalismos” (SENA, 1989, p. 13), dentre estes, a representação da experiência homoerótica.
Mas, ligar o poema em questão, simplesmente, a um dispositivo erótico, parece-me ainda um gesto por demais redutor. Por isso, a leitura aqui apontada do “Ganimedes” de Sena passa necessariamente por alguns caminhos caros ao escritor português, procurando mostrar que o tema em questão, ainda que observado de forma atenta pelo poeta, não está descontextualizado de todo um projeto de criação. Deste modo, não me parece gratuito o fato de o protagonista-flautista ser representado como um criador de melodias rodeado de pensamentos, que se vê arrebatado por um outro corpo, ambiguamente desenhado nas suas intenções, cuja ética do desejo passa necessariamente pela posse homoerótica como uma forma de êxtase experiencial, e que, por fim, diante destas duas formas de conhecimento – a da criação artística (e, quem sabe, poética também) e a da posse amorosa e homoerótica – não abdique de sua condição de deslocado e, de certa forma, de exilado. Ora, não estamos, aqui, diante daquelas três linhas de força da poesia de Jorge de Sena, auto-declaradas e depois sublinhadas por Francisco Cota Fagundes, quais sejam “amor, poesia e ter pátria” (FAGUNDES, 1999, p. 105)? Não estarão estes três “grandes temas senianos” (Ibidem) imbricados na metamorfose poética operada por ele neste texto de 1969? Não será o desejo homoerótico, neste sentido, uma forma de ser e estar no mundo, de conhecer e interrogar a experiência humana, tão visível e importante quanto a do ato de criação artística (e poética) e a do reconhecimento do olhar em exílio?
Nesta perspectiva, gosto de pensar que este “Ganimedes”, de Jorge de Sena, constitui-se como um daqueles poemas, de que nos fala Eduardo Prado Coelho, “[…] a que regressamos como se fossem lugares ou monumentos: não apenas para os lermos, ou para os entendermos, ou mesmo para os interpretarmos, mas para estarmos neles, simplesmente. São poemas onde apetece ficar, repousar, permanecer” (1999, p. 51). E tal permanência convidativa do texto de Sena explica-se, sobretudo, por aquilo que cumpre do projeto de transfiguração poética almejado pelo seu autor, ou seja, constitui um poema capaz de abarcar os principais eixos de sua criação, “compreendendo tudo, fitando tudo, aceitando tudo, menos aquilo que diminua a liberdade de criação, que o mesmo é dizer a liberdade do ser humano” (SENA, 1989, p. 15).
Se o decisivo, no final do poema, o que pensa o corpo do jovem raptado e sua relação com o sujeito abdutor, não nos é dado saber, como bem o dirá o poeta, o mais importante, porém, fica registrado pela palavra poética, espaço inequívoco da liberdade humana, que o amor possui muitas formas de se manifestar e expressar, e a de “Ganimedes” é apenas mais uma delas que precisa ser entendida e compreendida. De resto, como dirá Jorge de Sena em outro poema seu, “Que mais precisamos saber?” (SENA, 1989, p. 61).
Notas:
1. Como já tive oportunidade de fazer em outros ensaios, repito aqui (por entender que nunca é demais reafirmar a concepção teórica empregada) que a compreensão do termo está em consonância com a definição dada por Jurandir Freire Costa, para quem o homoerotismo consitui “a possibilidade que têm certos sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou se relacionar fisicamente de diversas maneiras com outros do mesmo sexo biológico” (2002, p. 22), ou seja, a expressão pode ser entendida como “uma possibilidade a mais que têm os indivíduos de se realizar afetiva e sexualmente” (Ibidem, p. 73).
2. Interessante observar alguns casos que atestam essa nossa constatação. Em sua recensão crítica sobre o referido livro de Jorge de Sena, Gastão Cruz, por exemplo, ainda que classificando “Ganimedes” como “outro dos cumes da poesia de Sena” (1973, p. 74), refere-se ao poema não sublinhando a revisitação seniana sobre a figura mítica homoerótica do personagem, mas enfatizando o “espantoso labor estilístico” (1973, p. 74) de suas quadras. Já Jorge Fazenda Lourenço (1998), no seu incontornável ensaio sobre a poesia de Jorge de Sena, referencia o poema em duas notas de rodapé, mas igualmente não centraliza a questão do homoerotismo como forma de representação da passagem mítica. Em contrapartida, mesmo não tecendo qualquer comentário crítico sobre o poema ou sobre o poeta (ou sobre quaisquer outros inseridos no seu elenco particular de escolha), Eugénio de Andrade (2002) presta uma sensível homenagem ao autor de Peregrinatio ad loca infecta, além de chamar a atenção para este belíssimo texto seniano, quando o insere na sua Antologia pessoal da poesia portuguesa.
3. Conhecida revolta ocorrida no bar Stonewall Inn, em Nova York. Durante três dias, gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros defrontaram-se com a polícia, desencadeando uma visibilidade que toda esta faixa da sociedade requeria e merecia, além de consolidar os direitos que a classe LGBT sempre reclamou. De acordo com o historiador Amilcar Torrão Filho, “Em 27 de junho de 1969, a polícia de Nova Yorque invadiu um bar gay chamado Stonewall Inn, no bairro Greenwich Village, alegando que o bar vendia bebidas alcoólicas sem licença, uma antiga tática de repressão aos estabelecimentos frequentados por homossexuais. Então o inesperado aconteceu: os donos e frequentadores, cansados das batidas policiais e das humilhações, resistem à entrada da polícia e à prisão dos donos, inicialmente de uma forma festiva. Mas com a chegada do carro da polícia, a multidão começou a jogar moedas, garrafas e pedras nos agentes repressores. Era o início de uma rebelião, com barricadas e enfrentamento, como se a revolução rosa tivesse começado.” (2000, p. 206).
4. No seu ensaio “O sangue de Átis” (1965), afirma Jorge de Sena: “Obviamente que seria excessivo imaginarmos complexos de castração em quantos escritores abordam o tema: ele é um tema central da cosmogonia grega, e pode ser bebido calmamente na cultura clássica. E uma aguda sensibilidade a certos aspectos fundamentais da psicologia profunda e da sociologia cultural, quando não apenas da vivência humana, não é necessariamente uma participação neles; nem o escrever deles significa obrigatoriamente que assim se sublimam, e revelam, facetas ocultas de uma sexualidade perturbada” (1978, p. 195).
5. Levamos em consideração para tal repertório as datas de escrita dos textos e não as de sua efetiva publicação.
6. Alguns poemas de Cavafy (s.d.), traduzidos por Jorge de Sena, são paradigmáticos na apresentação do desejo homoerótico enquanto manifestação proibida de uma realização plena dos sujeitos envolvidos. Basta lembrar, neste sentido, “Uma noite”, “Na rua”, “Quando elas despertam”, “Tanto a beleza eu contemplei”, “A montra da tabacaria”, “A mesa ao lado”, “Ao pé da casa”, “A bordo”, “Para que venham”, “A origem”, “Nessa aldeia mesquinha”, “Dias de 1901”, dentre outros. É também digno de nota o estudo introdutório e as anotações finais assinados por Jorge de Sena, em que o tradutor e ensaísta deixa claro o seu conhecimento da matéria tratada pelo escritor grego.
7. O próprio Jorge de Sena esclarece uma momentânea ausência de António Botto em uma das reimpressões da referida obra. Originalmente, porém, o autor de Canções já nela se encontrava: “Esta reedição revista e actualizada foi preparada onze anos depois de a antologia ter aparecido nos fins de 1958. A Primeira Parte dela contém agora os mesmos poetas de então, e que haviam sido incluídos por o não terem sido na 2ª. série das Líricas Portuguesas da Portugália Editora, organizada por Cabral do Nascimento. Apenas um nome entrou de novo […]. O poeta agora inserido na Primeira Parte é António Botto que, suprimido, a seu pedido, da 2ª. série em cuja 1ª. impressão aparecera, assim suprimido continuou em reimpressão dela, e sem o qual um panorama do período fica manifestamente incompleto” (1984, p. ix-x). Vale lembrar que o mesmo poeta reapareceria no seu Estudos de Literatura Portuguesa – III, publicado postumamente em 1988, por Mécia de Sena. Ainda, em 1958, Jorge de Sena inseria na coletânea os poemas em francês de Raul Leal, afirmando ser o referido escritor “uma das personalidades mais furiosamente activas na primeira fila de todas ou quase todas as manifestações modernistas, sempre tendo porém em mente a proclamação corajosa dos seus credos morais e sociopolíticos” (Ibidem, p. 10-11). Na mesma antologia e na obra de ensaios citada, encontram-se os poemas e algumas notas sobre Eugénio de Andrade. Sobre este último, ele e Sena mantiveram uma relação de amizade, além de terem sido contemporâneos na série Cadernos de Poesia.
8. Em carta datada de 15 de outubro de 1958, Raul Leal narra a Jorge de Sena toda a cena que o levou a ser preso, acusado de atos de homossexualidade. Como nem todas as cartas de resposta de Jorge de Sena puderam ser encontradas no espólio de Raul Leal, conforme explicação de Mécia de Sena, ainda assim, percebe-se na correspondência posterior, como nesta de 24 de dezembro de 1960, a visão perspicaz do crítico nas considerações sobre a obra do poeta órfico e o incômodo gerado por esta num meio português marcado pelo atraso e pelo conservadorismo. Diz Jorge de Sena: “Não deve estranhar as renitências que encontra a que a sua obra repercuta. Não foi sempre assim? Acha que a humanidade, e aí, tem mudado muito da sua hipocrisia fundamental ou do seu medo das realidades profundas, para encarar ou divulgar o que a aflige ou ofende? Há-de concordar – e ria-se um pouco, interiormente – que aquilo que tem dito e continuará dizendo, nem no tom, nem na ideologia, nem no que agita, é conveniente, pelo visionarismo, à chamada paz das famílias… Os filisteus e os fariseus… há um dentro de cada homem, mesmo quando faz um esforço muito grande para suprimir o horror ao espírito, que é desassombro e coragem.” (SENA & LEAL, 2010, p. 121-122; grifos meus).
9. Os textos citados por Jorge de Sena como epígrafes são: “Ó tu que entre os do vinho jarros de outro / Te moves com prazer tão delicado, / Ó Ganimedes, filho desta Tróia, / Os lábios dos Altíssimos esgotam / A taça que em tua mão se ergue e levanta” (Eurípedes – Troianas); “De Ganimedes falo” (Marcial – Epigramas, V, 55); “Meu gado é pensamentos, a que eu guio e sirvo; / Seu pasto os doces montes de um Amor sem fruto” (Sir Philip Sidney – Arcadia, II, 3); “A mim! A mim! / No teu colo / Para o alto! / Abraçando abraçado! / Para o alto no teu seio, / o todo- amor meu Pai!” (Goethe – Ganymed). Ainda que Jorge de Sena os cite no original, optamos por transcrever aqui apenas as suas traduções (SENA, 1989, p. 107).
10. A aproximação entre poesia e música e a importância desta na criação daquela constituem aspectos apontados por diversos teóricos, dentre os quais Aristóteles desponta como, talvez, o seu pioneiro. Em sua Arte poética, o filósofo grego esclarece que algumas formas poéticas “usam de todos os meios sobreditos; isto é, de ritmo, canto e metro, como a poesia dos ditirambos e dos nomos, a Tragédia e a Comédia […]” (1992, p. 21; grifos meus). Reconhecido como os “cantos improvisados em honra de Dioniso” (KERÉNYI, 2002, p. 276), os ditirambos eram executados por cantores e por flautistas (Ibidem, p. 175). No entanto, esta flauta, na verdade, refere-se ao aulos, principal instrumento de sopro na Grécia Antiga, geralmente executado em pares, e, segundo Petros Tabouris, utilizado nas cerimônias, sobretudo aquelas “em honra de Dionisio” (s.d., p. 35). Ou seja, o instrumento executado nas efabulações melódicas de Ganimedes não deixa de suscitar o exercício da criação poética no cenário em que o personagem encontra-se contextualizado. Mais do que simples praticante da arte aulética, Ganimedes e a sua performance na flauta sugerem também a presença de uma ars poetica dionisíaca, não apenas pela fusão criadora entre poesia e música, mas pela própria exacerbação da sexualidade que os cultos dionisíacos demandavam. Sobre este último aspecto, consulte-se, ainda, o ensaio de Giulia Sissa e Marcel Detienne (1990).
11. Em seu ensaio de 1965, “O sangue de Átis”, afirma o poeta-ensaísta: “A águia é, por excelência, o animal alado, a ave de Zeus. Transformado em águia foi que ele raptou Ganimedes” (SENA, 1978, p. 297).
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