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Goya, "Los Ensacados"

“A comemoração”: o simulacro do espetáculo

Publicada originalmente em Andanças do Demónio, de 1960, a narrativa seniana “A comemoração” é datada em seu termo pelo ano de 1943. Seu enredo gira em torno do empenho de Gustavo Dores, funcionário chefe de uma repartição pública, para prestar homenagem póstuma a João Pereira Castanheira, negociante que teria se elevado a governador de um distrito português na África Colonial, liderado ocupações e defendido o território conquistado contra os gentios, após o que, vitimado por uma doença tropical, terminara os seus dias em Lisboa, esquecido na mesma repartição onde surgia agora, dez anos após a sua morte, o projeto encampado por Dores:

De uma conversa de café surgira aquela idéia, mas, na voz empreendedora de Gustavo Dores logo a tal ponto se completou, que nem os habituais companheiros, levados na paixão imperial do chefe de repartição, reclamavam o título de sócios fundadores da importante comemoração a celebrar.[1]

Menos, porém, do que oferecer tributo ao finado homem, preocupa ao funcionário que seja reconhecido o seu próprio mérito pela organização da solenidade, cuja idealização reclamara exclusiva e quase impositivamente para si. Distinguir um suposto valor de alguém evidencia uma habilidade social e o ato de demonstrar tal habilidade é que se revela a primeira intenção de Gustavo Dores, sendo pois a celebração em si secundária, pretexto (oferecido aos outros e mesmo à sua própria consciência) para a exposição de sua figura pública. Fica isso manifesto, por exemplo, em seu planejamento do protocolo da cerimônia: levariam flores, colocariam silenciosamente os ramos, não haveria discursos, imagina ele, logo corrigindo-se, autenticando o seu direito de discorrer no evento, sem que, todavia, demonstrassem-se (nem mesmo para si) as razões egocêntricas que o levaram a formalizar a homenagem:

Dizia algumas palavras, era natural, fora o promotor, o organizador, se ali estavam a ele se devia. Palavras simples, explicando o motivo, fazendo uma leve referência ao seu esforço, talvez uma anedota do defunto não caísse mal, essas coisas, em tais ocasiões, enternecem sempre, sempre ajudam a recordar. [2]

Ora, ao contrário da maioria dos outros colegas de repartição, composta por funcionários reformados, empregados da Fazenda ou administradores saudosos do espaço e do poder, fartos da “secretaria” e, ao mesmo tempo, admiradores suspeitosos da burocracia metropolitana, Dores ostentava um duvidoso e frágil prestígio proveniente de ser um homem saído do outro lado dos “guichets” do Terreiro do Paço que portanto alcançara certamente a sua posição em razão de suas competências e sem apadrinhamentos. Reside nessa sua origem diferenciada a necessidade de ratificar tal distinção a partir de atitudes nobres (não por acaso entrega-se ao trabalho com mais empenho do que os colegas). A ideia da homenagem, então, revela-se um novo instrumento producente para que se sustente dentre os demais o conceito que sobre ele se desenvolvera.

Aqui, o evento que se organiza representa, dessa maneira, uma mercadoria a ser vendida: “Na cidade, tudo se compra e tudo se vende: as amizades, as honras, os títulos, os graus e as profissões de fé.”[3] — como descreve o filósofo francês Henri Laborit. Ora, esse produto que se torna a comemoração a ser realizada apresenta uma suposta funcionalidade, que na verdade pretende mascarar outra questão, de cunho ideológico. Outro pensador francês, Guy Debord, em sua leitura do que reconheceu como sociedade do espetáculo, esclarece essa sobreposição sígnica entre mercadoria e espetáculo:

O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis”, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência.[4]

E Dores se dedica com afinco à empreitada. Estabelece todas as bases do evento, da ampla badalação interna à divulgação externa via imprensa, passando ainda pelos rechaços à ajuda de colegas que ele julgava apenas quererem usurpar da sua glória; assim, aliás, “afastara friamente o Pereira Cláudio, outro chefe de repartição, que se interessara demasiado pela homenagem, e procurara associar-se a ela.”[5] Aguarda o dia marcado sob expectativas ilusórias, que a narrativa revela por meio do uso de um discurso modulado pelo hipotético: “dizia-se que o próprio Ministro, em conversa com o director-geral, louvara a iniciativa” [6]. Porém, na manhã agendada no cemitério para a comemoração, ninguém compareceu.

O cotejamento da cena imaginada pouco antes da chegada de Dores à campa do homenageado e da cena efetivamente realizada logo depois (cujos traços estão grifados abaixo) dá conta do paralelismo existente entre o egocêntrico (mas também ingênuo) pensamento do funcionário e o real baixo nível de entusiasmo que a comemoração despertara nos demais colegas de trabalho. A representação do grupo coeso que respeitosamente aguardaria portando flores recém-compradas, empenhado por conseguinte em consumar a comemoração que Dores julgava tão importante para todos quanto para si, transforma-se, por contraste, em uma cena com poucas pessoas isoladas no cemitério, todas sem ligação com o evento, na qual flores envelhecidas se destacam em meio a um campo sem requintes, com sinais de falta de manutenção.

Já via o quarteirão por detrás do qual repousava o Castanheira. Os outros esperá-lo-iam, em volta da sepultura funante, e todos de preto, com ramos em punho, conversando em voz baixa. A correnteza de jazigos encobria a cena; Gustavo Dores empertigou-se e afugentou do rosto a bonomia que a frescura da manhã nele espalhara. Dobrou a esquina. As sepulturas sucediam-se pela encosta abaixo; algumas pessoas, aqui e ali, moviam-se por entre a rede, aparentemente instransponível, de gradeamentos, cruzes e caixas de lata mais ou menos desbotadas. Não se via qualquer grupo. Gustavo Dores olhou em volta, ainda duvidoso, e depois ficou com os olhos perdidos na terra amarelada, que os ramos de flores envelhecidas faziam parecer um imenso jardim devastado pelo espalhar de tanto ferro velho, e as flores plantadas e viçosas não conseguiam emergir, com nitidez, de tão confusa massa. Era ali, não havia dúvida, mas não estava ninguém. Ninguém viera. [7]

Durante o percurso que Dores fizera ao campo-santo e mais tarde quando vai embora, identifica-se um elemento cujo espaço de sentido estrategicamente não preenchido institui um mistério que prepara o leitor para o episódio ambiguamente insólito que fechará a narrativa: trata-se da figura de um estranho homem que se encontra, de terno, no transporte coletivo em que Dores se conduz ao evento e que entra no cemitério na sua frente. O protagonista cogita desde a primeira vez em que o vê, em função dos trajes e do caminho, a sua intenção de participar da homenagem, quiçá atraído pelas notícias na imprensa, o que todavia não se concretiza. Na saída, após o fracasso, ao cruzar novamente com o homem, envergonha-se por ainda estar com as flores nas mãos (a falta de explicação plausível para alguém levar um ramo ao cemitério e sair ainda com ele faz com que Dores sinta que elas delatam a todos seu fracasso); por isso, entrega-as a ele, que as pega e volta-se novamente na direção das sepulturas. À noite, em casa, é prioritariamente sobre a efígie misteriosa desse homem desconhecido que o chefe de repartição solitariamente reflete (“tornara-se-lhe impossível arredar a imagem do extravagante sujeito, ora cruzando-se com ele, ora com as bochechas pendendo para as flores” [8]), quando a sua filha o chama para ouvir a notícia no rádio:

“…uma singela homenagem em memória de um ilustre africanista, Pereira Castanheira, que foi um dos heróis das Campanhas da Ocupação, defendendo Namucala contra milhares de indígenas revoltados. Em volta da sepultura, reuniram-se alguns dos seus amigos, entre eles o nosso querido consócio Sr. Gustavo Dores, alto funcionário da administração pública, a quem se deve a brilhante ideia desta comovedora cerimónia. Num curto mas sentido improviso, o Sr. Gustavo Dores traçou o perfil do homenageado, após o que todos os presentes desfilaram, em religioso silêncio, pela humilde sepultura, que deixaram juncada de flores.” [9]

A descrição desse não-acontecimento mostra-se uma manifestação francamente fantástica (em termos todorovianos) porque reside na ambiguidade de duas explicações opostas e cuja escolha a narrativa não concretiza: não é possível afirmar se o episódio representa uma efetiva sobrenaturalidade ou justifica-se pelo fato de o radialista noticiar algo que ele supõe assim ter ocorrido embora ninguém tenha realizado a cobertura jornalística da homenagem, apenas recriando um discurso a partir de uma série de lugares-comuns normalmente observados nesse tipo de cerimônia. Dores, por sua vez, não busca explicações; pelo contrário, apenas se regozija por ter alcançado o seu objetivo: Sentia-se feliz. E essa felicidade é, na verdade, resultado da sua opção (deliberada e consciente, claro está) por um jogo social de oportunismos. De certo modo desloca-se esse citado fantástico da ação para a ideologia. Se nada de extraordinário acontecera, se tudo afinal pode ter ao menos alguma explicação plausível, é o próprio cotidiano que se investe de implausibilidades, localizando-se aí, nesse ponto crucial, o cruzamento — perdoe-se a redundância — de uma farsa e de um simulacro com a realidade.

Em função disso é que, discorrendo sobre a contística de Sena, Óscar Lopes afirma:

A verdade é que Jorge de Sena se assume como narrador realista mesmo nos seus contos fantasmagóricos, aqueles que mais ‘desrealizam’ sensos de realidade predominantes, mesmo nos seus contos de feições lendárias, ou mais nimbados de uma distanciação histórica ou de um exótico oriental. [10]

Em “A comemoração”, onde a classe alvo de crítica é a de um indolente funcionalismo público (trechos como “A cerimónia fora marcada para as dez da manhã, hora afinal só propícia à pontualidade de Gustavo Dores, visto que os outros ou não tinham que fazer, ou começavam a trabalhar por volta dessa hora.” [11] confirmam isso), o acontecimento insólito — qual seja, o de a cerimônia ser descrita com detalhes embora não tenha ocorrido — ratifica a leitura sarcástica que a própria narrativa evidenciara ao reforçar as máscaras usadas pelos integrantes dessa burocracia metropolitana: vida social como jogo de simulacros. Afinal, a partir do discurso sobre a suposta consumação do evento, todos irão agir em função da sua presumida realização.

Maria de Fátima Marinho afirma que, nesse conto, “é o humor o elemento principal” [12]; e seríamos mais específicos em dizer que sua comicidade é alcançada pelo viés da ironia. E parece importante dizer que os funcionários ironizados na narrativa de Jorge de Sena estão inseridos no ambiente de trabalho de um Estado salazarista, totalitarista e imperialista. É o próprio autor quem, em nota publicada ao fim do livro, classifica essa criação sua como uma “alegórica sátira à mania ‘comemorativa’ que era endêmica no Estado Novo” [13] — e, por agora, pretendemos mais bem esclarecer o que motiva esse hábito festeiro.

O conto, segundo se observou, é datado ao seu término pelo ano de 1946, o primeiro pós-Segunda Grande Guerra Mundial, cujo resultado trouxera como uma das consequências para Portugal a possibilidade mais concreta de demonstração de uma crise da legitimidade do império português, causada pela descrença na superioridade da civilização ocidental e na missão tutelar das nações europeias sobre as outras raças, antes ditas inferiores. Estas são contudo leituras ideológicas difíceis de serem mantidas após um conflito vencido por uma aliança libertadora que se propunha a lutar contra a violência e o autoritarismo do nazismo e do facismo, sob o risco de se identificar com o inimigo, o que resultaria afinal numa estratégia pouco inteligente por parte do poder português. É preciso, portanto, encontrar outros caminhos para a sustentação do imperialismo colonial.

Ora, no conto, os funcionários públicos espelham um sistema de ideias introjetado, reproduzindo-as muitas vezes acriticamente. Trabalham para um governo que investe em propagandas ideológicas que buscam legitimar o império português das suas colônias africanas, baseado em um nacionalismo elitista que apregoa a crença na histórica missão sagrada de Portugal em mantê-lo, como se fora um direito afiançado pelas conquistas e descobertas atribuídas ao país nos últimos seis séculos e pela defesa dos valores cristãos. De fato, o Estado Novo aprofundara, a partir dos anos de 1930, essa mentalidade imperial no povo português, através de uma campanha eficaz com bases estabelecidas em realizações de impacto junto à opinião pública [14] — daí a sua endêmica mania comemorativa — e por intermédio de um sistema educativo de princípios fascistas e colonialistas, alicerçado numa leitura tendenciosa e, nesse sentido, claramente deturpada do poema épico camoniano, o que por muito tempo condenaria Os Lusíadas a uma verdadeira repulsa pela vertente política e intelectual anti-imperialista de tendência mais radical e possivelmente menos sensível à representação universalizante que a obra, na verdade, continha.

Pois é nesse contexto histórico e político que o protagonista do conto de Jorge de Sena realiza a homenagem a Castanheira, que teria sido peça ativa na exploração e na manutenção dessas colônias. Segundo Gustavo Dores, empreender a comemoração era recordar o passado, real ou virtual, de uma classe, da “sua” ( da “vossa”, como acentuava Gustavo Dores com simplicidade), era chamar a atenção pública, “por meio de uma iniciativa modesta mas significativa, para uma vida de perigos e responsabilidades”. Vale destacar que o protagonista se refere a um passado real ou virtual, como real ou virtual passará a ser, ambiguamente, a própria comemoração. Os funcionários públicos mostram-se, assim, coadjuvantes e vítimas também desse investimento do Estado Novo na propaganda imperial, cuja ideologia eles seguem alienadamente. Estamos sem dúvida na “sociedade do espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma no mundo que ela criou” [15], como ratifica Debord.

 

Notas:

1. SENA, J. de (1984), p. 87.
2. SENA, J. de (1984), p. 91. (Grifos nossos)
3. LABORIT, H. (1990), p. 190.
4. DEBORD, G. (1997), p. 28.
5. SENA, J. de (1984), p. 90.
6. SENA, J. de (1984), p. 89.
7. SENA, J. de (1984), p. 93-4 (Grifos nossos).
8. SENA, J. de (1984), p. 98.
9. SENA, J. de (1984), p. 99.
10. LOPES, Ó. (1984), p. 328.
11. SENA, J. de (1984), p. 90.
12. MARINHO, M. de F. (1987), p. 180.
13. SENA, J. de (1984), p. 217.
14. Em 8 de junho de 1940, inaugura-se em Coimbra o parque temático “Portugal dos Pequeninos”, miniatura emblemática do paradisíaco império português, no conjunto das comemorações de oito séculos da fundação de Portugal (1140-1940). Essas festividades ganhariam força entre os meses de junho e dezembro de 1940 na conhecida “Exposição do Mundo Português”, realizada em Lisboa, que se oferecia como imagem idealizada do império e como contraponto de uma Europa devastada pela guerra.
15. DEBORD, G. (1997), p. 35.
Referências bibliográficas:
1. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo – comentários sobre a sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
2. LABORIT, Henri. O homem e a cidade. Tradução: Alberto Paes Salvação. Lisboa: Europa-América, 1990.
3. LOPES, Óscar. “Os contos de Jorge de Sena (problemas de um assumido realismo)”. In: LISBOA, Eugénio (org.). Estudos sobre Jorge de Sena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 319-37.
4. MARINHO, Maria de Fátima. O Surrealismo em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
5. SENA, Jorge de. Antigas e novas andanças do demónio. Lisboa: Edições 70, 1984.
6. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2004.