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Entre o universo visual e o textual: imagens do cinema na obra de Jorge de Sena

 

Com este ensaio que Dora Gago gentilmente nos cedeu, regressamos ao Jorge de Sena cinéfilo, e aos ecos do cinema em sua obra.

 

 


Introdução:

Jorge de Sena, como grande apreciador de todos os tipos de Arte – confessou, aliás, necessitar tanto dela como do ar que se respira – foi um cinéfilo atento, esclarecido e crítico.

Nesta esteira, escreveu diversos comentários sobre cinema, reunidos numa obra intitulada Sobre Cinema (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1988), organizada por Mécia de Sena.

Na introdução desta obra, D. Mécia salienta o facto de Sena e de o cinema terem crescido juntos, tendo esta paixão sido alimentada, desde tenra idade, por uma avó cinéfila: “Esta paixão pelo cinema jamais a perdeu Jorge de Sena” (Sena 1988:19).

No presente trabalho, deter-nos-emos, em primeiro lugar, nas considerações de carácter geral, tecidas por Sena em Sobre Cinema, para depois tentarmos compreender de que modo o universo visual transparece no textual, através da análise dos poemas de teor “cinematográfico”: “o couraçado de Potemkin” e “À memória de Kazantzakis e a quantos fizeram o filme Zorba the Greek”.

Acerca do cinema

A obra Sobre Cinema reúne cerca de quinze textos, elaborados pelo autor, para serem lidos como comentários precedendo a projecção de filmes organizada pelo JUBA (Jardim Universitário das Belas Artes) que decorreram entre 1949 e 1955 e cujo objectivo era manter o contacto continuado com as grandes obras de cinema. Estas exibições eram acompanhadas por comentários críticos de destacadas figuras da cultura, como Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, entre outros.

Além disso, o livro contém ainda três textos anteriores, intitulados: “Charlot”, “A Bela e o Monstro de Cocteau” e “Almas Perversas de Fritz Lang”, escritos como crítica cinematográfica para o “Mundo Literário” em 1946 e 1947. Incluem-se igualmente duas palestras, respectivamente de 1947 e 1958, comentando o filme “Otelo” de Orson Welles. O último texto sobre cinema foi escrito a propósito do filme polaco “A passageira de Munk”, em 1966, e enviado para a revista O Tempo e o Modo, onde não chegou a ser publicado, devido à Censura.

De um modo geral, constatamos que, ao delinear a crítica cinematográfica, Jorge de Sena nunca considera os filmes isoladamente, preocupando-se, pelo contrário, em contextualizá-los numa macro-estrutura cultural, histórica e social, inserindo-os em universos de referência. Porém, aliados a esses universos, surgem, por vezes, outros aspectos, que à primeira vista, nos poderão parecer irrelevantes, como é o caso das condições das salas de projecção ou até do próprio comportamento do público. No entanto, a pertinência destes pormenores é indiscutível, pois documenta também o modo como a Sétima Arte era recebida e assimilada. Tal como refere Emmanoel Santos, “ Na verdade o referencial de Jorge de Sena vai além do cinema e de sua história, como vai além da literatura, do teatro, das artes em geral e suas histórias. O referencial de Jorge de Sena é simplesmente a própria vida.” (Santos, 1999: 73).

Assim, os comentários esclarecidos que Sena tece aos filmes revelam a sua predilecção por um cinema inquieto e inovador, abordando, como já referimos, inclusive, os diversos elementos que interagem nas projecções, desde as condições ou temperatura da sala, ao comportamento do público.
Segundo o autor, todos os filmes devem ser vistos, mesmo os de má qualidade, já que “quase não há filme que não mereça ser observado, excluídos aqueles que é claro, repetem à saciedade o que já fora repetido noutros anteriores” (Sena, 1988:133). Porém, até esse fenómeno de repetição mecânica parece revestido de pertinência, já que permite analisar as características da produção industrial cinematográfica, tal como “a capacidade de habituada aceitação do consumidor que é o público”. (Sena 1988:133).

Esta ideia do valor cultural, testemunhal do cinema é também salientada por Edgar Morin, ao afirmar: “Precisamente por ser um espelho antropológico é que o cinema reflecte, de modo imprescindível, as realidades práticas e imaginárias, ou seja, as carências, as comunicações e os problemas da individualidade humana do seu século.” (Morin 1980:194-195). Nesta esteira, para além do seu valor estético, enfatiza-se a importância do cinema como documento histórico e antropológico, testemunho vivo de uma época e dos saberes nela praticados e veiculados.

De certo modo, também reflexo de uma época e de uma geração, é a notória admiração revelada por Jorge de Sena pela obra de Charles Chaplin – um ponto em comum com outros intelectuais seus contemporâneos, como é o caso de José Régio ou Miguel Torga. Nesta sequência, José Régio, num artigo publicado na revista presença, folha de arte e crítica, em 1927, intitulado “Charles Chaplin”, descreve-o como um “inimitável solitário”, no qual os romancistas reconhecerão “um íntimo conhecimento dos homens, um agudíssimo poder de observação”; enquanto que Torga lhe dedicou diversas passagens do seu Diário, nas quais lhe reconhece a genialidade e originalidade, tendo escrito aquando da sua morte: “Sim, o mundo está mais pobre. Um génio que o habitava desapareceu para sempre” (Torga 1999: 1354). Por seu turno, Jorge de Sena, no artigo “Charlot, hoje e sempre” (1988: 23-29), constata que “a figura de Charlot pertence ao património espiritual da humanidade”, reconhecendo-lhe igualmente a genialidade. Neste caso, sobretudo os primeiros filmes de Chaplin são analisados, minuciosamente, a nível de estruturação, e considerados superiores ao que se lhes seguiram, pois a redução ao essencial foi sempre uma das características técnicas destes filmes. Assim é elogiada a sua obra magnífica, a riqueza expressiva é considerada do melhor que o cinema tem dado, pois “Sinceridade, independência, honestidade de factura, verdadeira originalidade não se encontram, assim, nem todos os dias nem em todas as artes”. (Sena 1988:29). Esta semelhança revela que os textos de Sena deixam transparecer a relação que a intelectualidade portuguesa estabeleceu com o cinema, sobretudo nos anos cinquenta.

De um modo geral, o autor prefere o cinema europeu (francês, polaco, alemão, inglês), em detrimento do americano, ao qual critica a “perfeição técnica, estupefaciente e idiota”, susceptível de fomentar uma falseada representação da vida. (Sena, 1988: 36).

Além disso, no discurso de inauguração do “Círculo de Cinema”, o escritor salienta o facto de o cinema se assumir como forma de comunicação inconveniente, devido à sua natureza de espectáculo ao alcance das grandes massas, já que:

pesam sobre ele as restrições dos interesses gerais e as restrições dos interesses locais. É assim que um filme depois de atravessada a fieira do país de origem (…) pode não atravessar a do país de chegada, a menos que os interesses gerais, que o lançam se oponham e sobreponham aos interesses locais, em nome, é claro, da liberdade (…) (Sena, 1988: 36).

De certo modo, caberia ao cineclubes, através da promoção da crítica, minorar estes males, promovendo esta mesma liberdade de ideias, promotora da descoberta de novos mundos e de novas vidas.

Na verdade, com a tela, para além de uma nova dimensão da comunicação, instaura-se um novo critério de verosimilhança, através do qual a realidade perpassa. E, neste ponto, tal como afirmou Yuri Lotman, “O mundo do cinema está extremamente próximo da vida. A ilusão de realidade é, como vimos, uma sua propriedade inalienável”. (1978:45). Contudo, esse “mundo” é formado, não pela realidade completa, mas parcial, ou seja, apenas uma parte dela é talhada, ultrapassando, por vezes, as mais diversas contingências ideológicas, no ecrã.

Outro autor que partilha a concepção desta aliança entre o cinema e a vida é Edgar Morin, ao afirmar: “ O cinema, é, pois o mundo, mas um mundo meio assimilado pelo espírito humano. Assim como também é o espírito humano, mas projectando este, activamente, no mundo, em todo o seu trabalho de elaboração e de transformação, de permuta e de assimilação”. (1980: 188). Por conseguinte, é através da fusão entre o teor objectivo e o subjectivo, inerentes ao cinema, que se desvenda a sua oculta essência, residente, afinal, no funcionamento do espírito humano no mundo.

Deste modo, esta postura crítica de Jorge de Sena perante o cinema, assume-se como um espelho da sua lúcida visão do mundo e da Arte. Isto porque, para ele, tal como refere MS Fonseca, o cinema é “uma forma de expressão artística tão sui generis que pode oscilar entre a síntese de todas as artes e a sua negação” (1988:10-11). Nesta medida, e partindo da premissa que a Sétima Arte revela o “processo de penetração do homem no mundo” (Morin, 1988:188) e vice-versa, veremos de que modo o universo visual cinematográfico desembarca no poético.

O cinema que desagua na poesia

Mécia de Sena salienta a influência cinematográfica na escrita de Jorge Sena, exemplificando, na introdução de Sobre Cinema, com o poema “outra linha”, datado de 1 de Maio de 1939, presente em Post-sciptum II, 2º volume. Com efeito, esse texto abre com uma imagem típica de um filme, onde se cruzam o som e a imagem em versos impregnados de sinestesia: “um ranger igual de linhas com areia…/O comboio naquele continente largo/Em cujo céu tão alto/Cabem ao mesmo tempo a Tempestade e o Sol”. (Sena 1985:127). Seguidamente, é a sensação de movimento em diferentes ritmos que domina: “A curva…. Crispavam-se as ferragens…/Árvores apressadas…/Outras mais longe devagar…/Outras mais ainda… balouçando os ramos e rodando…(Sena, 1985: 127). E a “câmara” do poeta prossegue a sua “filmagem”, oscilando entre um plano geral da planície amarela, com verdura em molhos, para se deter, depois num “grande plano” de uma “pedra redonda muito alta, /Cinzenta desirmanada, lisa…” (1985:127). Depois, são as outras imagens que invadem o ecrã do poema para se sobreporem através da memória: o mar, com peixes, tubarões, conchas, um navio velho ancorado, sem pintura, sem mastros, aliados ao som longínquo dos tambores. Por fim, o ranger da areia funde-se na imagem das praias de Lobito, alargadas a uma recordação africana, através dos seguintes versos: Tudo! Lembrar eu isto com m ranger de areia! / Só porque aqui – carro eléctrico…rua em obras… linha[suja!…” (1985:127).

Todavia, encontramos outros exemplos de uma assumida aliança do universo visual cinematográfico ao textual. Um dos casos ilustrativos desse mecanismo de transposição entre os dois universos é o poema “o couraçado de Potemkin”. Escrito por Jorge de Sena, em S. Paulo a 23/12/1961, este texto deveria, inicialmente, ter integrado a colectânea Peregrinatio ad Loca Infecta, mas que foi retirado dela, por ser impossível a sua publicação naquela época. Segundo referiu o autor, numa nota, o poema espelha a profunda impressão causada pelo filme de Eisenstein, mas também algumas esperanças depositadas, naquela altura, no alvorecer de um futuro democrático para Portugal.

No que toca ao “couraçado de Potemkin”, realizado por Serge Eisenstein, em 1925, considerado um dos marcos da história da Sétima Arte, importa referir que se baseou num facto histórico, ocorrido a bordo do navio de guerra da Frota do Mar Negro da Rússia. Tal evento materializou-se em Junho de 1905 com a revolta da tripulação do couraçado de Potemkin, impulsionada pelas condições precárias. Neste contexto, o filme tornou-se uma obra universal, emblemática, sobre a injustiça, e o poder colectivo que impregna as revoluções populares.

Sendo o realizador russo Eisenstein (1898-1948) considerado um dos grandes definidores de uma genuína linguagem cinematográfica, tanto pela concepção de montagem, como de composição cénica, constatamos que, no filme supramencionado, todos os pormenores possuem um significado que deve ser apreendido. Obviamente que Sena, espectador esclarecido, atento e lúcido, os captou e converteu em linguagem poética, tecendo de palavras as diversas imagens que lhe assombraram o espírito, através de um atitude dialógica.

Então, o poema, intitulado “o couraçado de Potemkin”, projecta a rebelião da embarcação russa para um cais da segunda metade do século XX, parecendo iniciar-se com as cenas finais do filme: “Entre a esquadra que aclama/ o couraçado passa./ Depois da fila interminável que se alonga/ sobre o molhe recurvo na água parda” (1978:55). Assim, o navio trilha o seu percurso sereno, sem pressa de chegar, embalado pela dissonância entre a revolta e a esperança. Aliás, o filme termina com a comemoração da fraternidade, pois o “Potemkin” envia uma mensagem para a esquadra, incitando os outros barcos a aderirem à Revolução, o que ocorre.

A seguir, através de um flash back, ou em termos literários, de uma analepse, evidencia-se um recuo temporal para retratar célebre e clássica imagem da escadaria de Odessa, que surge na quarta parte do filme – dividido em cinco partes). Nesta cena, uma mãe é assassinada e o carrinho de bebé desce degraus abaixo. Neste contexto, a escada encerra em si a simbologia da cruel hierarquia social e política, a diferença entre as classes sociais. Este símbolo, embora possa ter também uma conotação positiva, representando uma progressão, reveste-se aqui de um aspecto negativo, simbolizando a descida, a queda, a regressão, que resume todo o drama da verticalidade.

Escreve então o poeta: “depois do carro de criança/ descendo a escadaria,/ e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos, /o couraçado passa”/ A caminho da eternidade. Mas/ foi isso há muito tempo, no Mar Negro./” (1978:55). É ainda nesta parte do filme que se desenrola o massacre do povo de Odessa pela guarda imperial do Czar. O sofrimento calado, indizível é transmitido através dos gritos mudos, porque mudo era o cinema da altura, mas também porque a mudez de um grito encerra uma dor insuportável, cuja sonoridade ecoa na poesia.

A relação espaço/tempo, abordada de forma ímpar no filme, é aqui transposta através da utilização de expressões configuradoras dessa relação: “depois”, “há muito tempo”, evoluindo depois para uma dimensão atemporal, através da alusão à “eternidade”.

A seguir, na segunda estrofe, é notória uma projecção universal de denúncia da injustiça e da violência, tão presentes no filme: “No cais do mundo, olhando o horizonte,/ as multidões dispersas/ esperam ver surgir as chaminés antigas,/aquele bojo de aço e ferro velho”(1978:55). A imagem metafórica do “cais do mundo” espelha bem a esperança de que um dia, todos os “marinheiros” do mundo, oprimidos, injustiçados, possam esperar por um navio salvador, ou permanecendo em terra firme, se recusem a engolir a carne podre, imposta ao longo dos tempos.

Então, numa estrofe impregnada de dramatismo, visualismo e acção, transmitidos através dos verbos conjugados no presente, o poeta constrói imagens fragmentárias, projectadas e actualizadas no seu tempo, no tempo das ditaduras e da falta de liberdade: “Uns morrem, outros vendem-se, /Outros conformam-se e esquecem e outros são/ assassinados, torturados, presos. /Às vezes a polícia passa entre as multidões, / e leva alguns nos carros celulares.” (1978:55). No entanto, mesmo perante este cenário de medo e opressão há sempre alguém que resiste e alimenta o sonho da liberdade: “Mas há sempre outra gente olhando os longes, / a ver se o fumo sobre na distância e vem/ trazendo até ao cais o couraçado.” (1978:56).

No entanto, o couraçado tarda e o tempo ganha a densidade do desespero, assumindo a mesma tensão do filme. E neste cenário de ansiedade, tensão e desespero, apenas a luz da esperança vai ganhando maior intensidade, culminando na penúltima estrofe com os verbos no futuro do indicativo: “Há-de vir e virá. Tenho a certeza/ como de nada mais. O couraçado / virá e passará/ entre a esquadra que o aclama.” (1978:56).

No final, fundem-se o passado e o presente, para terminar com uma afirmação que enfatiza a última esperança: “Partiu há muito tempo. Era em Odessa,/ no Mar Negro. Deu a volta ao mundo./ O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares/ são largos./ Fechem os olhos,/ cerrem fileiras,/ o couraçado vem.” (1978:56).

De novo, então, a evocação do espaço concreto (Odessa), e no final o apelo “Fechem os olhos / cerrem fileiras”) (1978:56). Num poema dominado pelo universo visual, não deixa de ser curioso e quase paradoxal o apelo feito pelo poeta, através da utilização do imperativo. Contudo, o facto de apelar a que “fechem os olhos” será uma forma de evasão da realidade circundante, de modo a mergulhar de forma mais intensa no reino da esperança, para acreditar mais veementemente que “o couraçado vem” (1978:56).

Assim, este poema construído a partir de um filme emblemático da defesa da liberdade, no qual a violência é concebida como aberração e o couraçado significa sobretudo um processo qualitativo de transformação, um hino à defesa da liberdade artística e humana, revela precisamente a faceta profundamente humanista de Jorge de Sena. É, no fundo, a sua concepção da vida, da violência, a condenação da tirania, sempre iluminada pela centelha da esperança, que este filme lhe parece ter despertado, consubstanciando-se em poesia. Neste caso, podemos, inclusive, aludir a uma citação feita por Roberto Nobre de Schwob (1920): “São as raízes do ser, (…) é essa fermentação subterrânea, fora do qual todos os nossos pensamentos desabrocham no ponto de tangência do nosso ser mais secreto e o mais ignorado de nós próprios, com aquilo que nós nos orgulhamos de ser, que o cinema nos faz enfim atingir.” (Nobre, 1939:200). Terá sido nitidamente este o efeito provocado por este filme no poeta.

Outro poema apelidado de cinematográfico, tem como “mote” um filme, cujo cenário também é banhado pelo “Mar Negro”, intitula-se “À memória de Kazantzakis, e a quantos fizeram o filme Zorba the greek” e integra a Peregrinatio ad loca infecta, 1969.

Com efeito, Kazantzakis, autor muito admirado por Jorge Sena, é considerado um dos maiores escritores gregos do séc. XX, tendo vivido também as amarguras do exílio, visto ter sido considerado um autor proibido.

Então, o poema inicia-se com uma frase: Deixa os gregos em paz, recomendou/uma vez um poeta a outro que falava/de gregos”. (1978: 86).

No fundo, Sena partilha com o escritor grego a imagem de uma Grécia real, veiculada pelo filme, que se afasta de um estereótipo concebido pela memória ocidental. O que ele admira é o espaço habitado por homens reais, de carne e osso, que destoa de uma Grécia idílica, utópica, reino de deuses e de alvas estátuas. É essa realidade que habita o filme que, muito resumidamente, narra a história de Basil, um escritor greco-britânico, proveniente da Inglaterra, que, impulsionado por uma crise de criatividade, decide ir para Creta, terra natal do seu pai. Enquanto aguarda para embarcar no navio que o conduzirá à ilha, conhece Zorba, um grego simples e entusiasmado, com vários alcunhas, segundo ele próprio refere – sendo um deles "Epidemia", graças ao seu “dom” para espalhar o caos. Zorba simpatiza com Basil e torna-se seu companheiro de viagem, disponibilizando-se para trabalhar com ele na mina herdada do pai.
Toda a acção é atravessada pelo constante conflito entre os costumes dos aldeões locais, por vezes marcados por alguma agressividade, e os padrões culturais e comportamentais do estrangeiro recém-chegado. É o tom realista, humano, genuíno com que se configura essa Grécia real, que como já verificámos, seduz Jorge de Sena, por isso, afirma:

Apenas Grécia nunca houve como
essa inventada nos compêndios pela nostalgia
de uma harmonia branca. Nem a Grécia
deixou de ser – como nós não – essa barbárie cínica,
essa violência racional e argua, uma áspera doçura
do mar e da montanha, das pedras e das nuvens,
e das caiadas casas com harpias negras
que sob o azul do céu persistem dentro em nós,
tão sórdidas, tão puras – as casas e as harpias
e a paisagem idem – como agrestes ilhas
sugando secas todo o vento em volta. (1978:87)

Deste modo, o que surpreende e cativa o autor, neste filme, é a autenticidade, o pulsar da vida com todas as suas facetas negativas e a brutalidade que lhe é inerente, pois: “(…)– há nisto, /e na rudeza com que a terra é terra,/e o mar é mar, e a praia praia, o tom/ exacto de uma música divina” (1978:88).
Assim, a única divindade possível reside precisamente na humanidade – esta é uma das premissas senianas, para quem apenas o humano se encontra imbuído de um teor divino. E, sem dúvida, esta é uma característica que habita este filme, anunciador do poder da amizade, da solidariedade, da força da esperança e de uma certa dose de loucura associada à liberdade. Basta recordarmos a cena em que Zorba diz a Basil que ele tem tudo, mas que lhe falta a loucura e que sem ela, “nenhum homem vai ousar soltar-se e ser livre” (Cacoyannis, Michael 1964).

Por conseguinte, a grande lição que a Grécia nos dá, através deste filme, segundo Jorge de Sena, é apenas esta:” (…) o viver com fúria, este /gastar da vida, /este saber que a vida é coisa que se ensina, /mas não se aprende. /Apenas/pode ser dançada”. (1978: 86).

É com esta notória alusão ao final do filme com a dança de Zorba, convertida num dos arquétipos do cinema mundial, que o poema encerra.


Conclusão

Em suma, podemos concluir que Jorge de Sena sempre considerou o cinema como uma arte essencial na representação e descoberta da História, do Mundo, da vida, do Homem, pois como referiu Edgar Morin “O cinema é, por essência, tão indeterminado e aberto como o próprio homem” (1980:193).
Entrecruzando o universo visual e sonoro com o literário, estes poemas de inspiração cinematográfica, sintetizam as convicções artísticas, poéticas e pessoais deste prodigioso autor. Então, se no Potemkin o universo visual do cinema convoca o textual para condenar as injustiças, as atrocidades, a opressão que vítima tantos seres humanos, lançando um grito de revolta, de defesa da liberdade, neste último, encontramos a apologia da amizade, da autenticidade, da liberdade, do humano em contraposição ao divino. Isto porque é necessário desfazer os estereótipos, viver de forma verdadeira, intensa e autêntica, já que a vida apenas “pode ser dançada”.

 

Bibliografia:

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SANTOS, Emmanoel – “Jorge de Sena: textos sobre cinema”, SANTOS, Gilda, org., Jorge de Sena em rotas entrecruzadas, Lisboa, Cosmos, 1999, 69-76, ISBN 9727621821.
SENA, Jorge (1978). Poesia III, Lisboa, Círculo de Poesia, Moraes Editores, 288 p.
SENA, Jorge (1985) Post Scriptum II (recolha, transcrição, nota de abertura de Mécia de Sena), co-edição Moraes editores, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 305 p.
SENA, Jorge. (1988). Sobre cinema. Lisboa, Ed. Cinemateca Portuguesa, 191 p.
TORGA, Miguel. (1999). Diário, 2ª ed. integral, Lisboa, Publicações Dom Quixote, ISBN: 972-20-1647-4 1788 p.

Filmografia:

O Couraçado Potemkin (1925), Dir. Serge Eisenstein, União Soviética.
Zorba, o Grego (1964), – adaptação cinematográfica do romance homónimo de Nikos Kazantzakis. Dir. Michael Cacoyannis, 20th. Century Fox, USA.