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Natividade, Paula Rêgo

Os Antinatais de Jorge de Sena

Avisando que "este texto foi escrito como introdução a uma colectânea de poemas de Natal de Jorge de Sena que, por razões que desconhecemos, nunca chegou a ser publicada", o ensaio de Eugénio Lisboa, cuja transcrição agradecemos, percorre com sua habitual argúcia crítica os "antinatais" senianos, sem esquecer os elos com a ficção breve do autor. Neste ensejo, nosso site adere ao coro de homenagens a Eugénio Lisboa, encabeçadas pela Universidade de Aveiro, desde seus bem-vindos 80 anos.


«At Christmas I no more desire a rose
Than wish a snow in May's new-fangled mirth»

SHAKESPEARE, Love's Labour's Lost


«Tenho lá o Natal à minha espera».
JORGE DE SENA, Andanças do Demónio


Os poemas de Natal que Jorge de Sena escreveu entre 1938 e 1977 (ano em que «festejou» o último Natal) são, em boa verdade, mais do que os quinze aqui reunidos. Mas quis Mécia de Sena levar o escrúpulo até ao ponto de não incluir, neste conjunto, poemas que, na realidade, pelo conteúdo e pela data em que foram escritos, bem podiam ser considerados como poesia alusiva à quadra de Natal. E não os quis incluir pela simples razão de Jorge de Sena os não ter explicitamente indicado (e intitulado) como «poemas de Natal». Todos os textos aqui antologiados, à excepção de um, tiveram como título, ou simplesmente «Natal», seguido do ano respectivo, ou como é o caso de dois deles, um título mais longo e descritivo mas onde expressamente se alude à quadra festiva («Cartão de Natal para Sidónio Muralha — 1965» e «Sobre uma antologia lírica do Natal— 1969»). O único poema incluído que, na versão publicada, tanto na primeira edição de Coroa da Terra, como nas duas seguintes de Poesia -1, não usa de um título alusivo à quadra natalícia, é o poema «Estupro». Porém, no caderno original, sob este título, escrito à mão por Jorge de Sena, encontra-se anotado um outro, «Natal – 1942», que traduz claramente, se não uma intenção de substituir o primeiro pelo segundo, em edições ulteriores de Poesia -1, pelo menos o desejo inequívoco de associar este poema aos outros «Natais» disseminados ao longo da sua obra.

Dos Quinze Natais que agora se reúnem em volume separado, doze foram já publicados em livro e três são inéditos («Natal – 1938», «Cartão de Natal para Sidónio Muralha – 1965» e «Natal – 1972»). Os doze não inéditos distribuem-se irregularmente pelos livros: Coroa da Terra (1946), Pedra Filosofal (1950), Post-Scriptum (1960), Exorcismos (1972) e Quarenta Anos de Servidão (1979).

«Tenho lá o Natal à minha espera», dizia o menino Jesus ao Diabo, a ver se o enganava, num dos contos das Andanças do Demónio. Todos os anos, por alturas do fim do ano, Jorge de Sena, esse grande e interminável atormentado, tinha também o Natal à sua espera. Mas não a ver se nos enganava, nem sequer a ver se a si próprio se enganava. O Natal à espera… Não um Natal adocicado e festivo», um desses em que, como ele troçava,

Mais dia menos dia todos vão pôr um versinho
bom ou mau como ovo e não se sabe o que
nasceu primeiro se a galinha se o ovo. (…)

Não esse, não o Natal de «noite santa, e clara, inda que escura» do «tranquilo» poema de Diogo Bernardes de que ele faz uma terna caçoada no poema de 1969 em que, à sua maneira desfigurativa, escrevendo «versos de Natal raivoso», «celebra» e comenta uma antologia lírica do Natal. Não este Natal, com as inevitáveis «pombinhas da paz dos maus poetas», com a «missa do galo, o sapatinho, o abeto / a concorrer pagão com o presépio, cartões de Boas Festas, e as cantigas / nacionais importadas e folclóricas», suavemente esquecendo a «peste e fome e guerra e a dor de não / doer o coração que não existe». Isso não:

(……..) Antes calar
que este sofrer de prometida glória
sem ter vivido em honra e liberdade
amando os outros como se a nós mesmos.

A época de Natal constituía para Jorge de Sena, segundo testemunho de quem com ele de perto conviveu, um período de especial inquietação, nervosismo e, frequentemente, depressão. Haveria, a partir de certa altura, uma razão: o "estar longe", fora da antiga e fácil pátria da amargura» que ele acusa e agride mas não esquece nem deixa de obsessivamente amar. Há isso. Mas há também, neste gigante nervoso, a aguda ressonância de uma consciência para quem uma data que se presume simbolizar a fraternidade, a paz e a harmonia lhe não traz senão notícias de «Natais sempre de. guerra» e «da traição de que fomos contra a vida». Porque é sobretudo a tónica destes Natais peculiares que o autor das Andanças do Demónio, com obstinação significativa, foi escrevendo até ao último, poucos meses antes de falecer: uma negação de que o Natal tenha, dentro de nós, alguma vez existido, ou exista ou venha a existir… Os Natais de Jorge de Sena tratam, sob a forma retórica de «alusão em eco», de falar de uma ausência que dói e nos incrimina, de uma impossibilidade que agrava a sede e a fome, de um vazio que insistimos em não encher, falam, em suma, dos antinatais que somos, por culpa de tudo e de cada um de nós que os não vive dentro de si, como exigência e responsabilidade que se não podem transferir… «A minha alma está numa tristeza mortal», diz-se que murmurou o Cristo de Mateus, quando já próximo do fim e longe portanto do Primeiro Natal. É esta «tristeza mortal» que irriga, insatisfeita, os poemas natalícios de Jorge de Sena e lhes confere uma força desfigurativa e uma eloquência agressiva na negação, que os torna um conjunto único na literatura portuguesa. «Não é já de Natal esta; poesia», queixa-se o poeta em 1947, isto é, nove anos depois de publicado o primeiro poema de Natal que também disso o não fora. Nenhum deles o é. Aludem todos ao eco de um Natal de. que fala a tradição e contra o qual se insere, em contraste violento, o Natal que não existe mas que dolorosamente o imita durante o período festivo em que ele caberia se coubesse. O Natal coincide, na geografia do hemisfério norte e na mitologia dos povos que o celebram, com o Inverno. E se, como observa o desenvolto narrador do conto «Razão de o Pai Natal ter Barbas Brancas», «o Inverno é um mau costume», o Natal, nos poemas de Jorge de Sena, não é menos «um mau costume»: o de nos lembrar com furor repetitivo que «nenhum Natal será já possível»… Aqui ou ali o autor quase se enternece «esquecido de si e do mal que busca», quase sentindo um calor de conforto que, todavia, rapidamente denuncia como oriundo do «lume de não estar pensando». Se o Natal celebra o nascimento de um deus que nos vai redimir, eis que o poeta faz explodir a esperança, insinuando que «os deuses nascem de nenhum nascer» e que o parto é apenas "o parto ameno do ventre imaginado".

Há nesta denúncia de um Natal que todos ajudámos um pouco a assassinar, uma atitude de radical exigência que sintoniza com uma das facetas do Jesus lendário que a mitologia cristã também regista. A esse Jesus, o das grandes exigências, o Jesus que fustiga com aspereza os vendilhões do templo, chamou Régio um dia, em páginas grandiosas, intensas e ásperas, «esse supremo Extremista». Há uma raça de duros, radicais nas suas exigências ao que, em nós exista de melhor que, tal como o don Alvaro da peça de Montherlant, pertencem a uma das legítimas «famílias espirituais» do cristianismo. Como observava o autor de O Mestre de Santiago, «eles fazem tanto parte dela [dessa família], quanto o faz a raça dos suaves». É essa dimensão de agónica, desmedida e tendida radicalidade que perpassa no clima destes singulares Natais que irrigam obstinadamente o universo de fantasmas e obsessões que é a poesia de Jorge de Sena. São de um teor onde não há lugar para escusas ou complacências. O mal é antigo e colectivo:

Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício de inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras de caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.

Mas o colectivo da responsabilidade de modo nenhum demite a terrível responsabilidade individual e solitária de cada um de nós: «É sozinhos», observa Saulo, personagem desse conto extraordinariamente revelador que é A Noite Que Fora de Natal, «[é sozinhos] que os homens se salvam ou se perdem. Deus não lhes dá mais do que uma alma e o seu infinito amor, e os preceitos que devem entender com o coração. Sempre insisti nisso enquanto escrevo». Sempre insisti nisso enquanto escrevo, observava Saulo e o mesmo poderia dizer Jorge de Sena, escritor implacavelmente lúcido e incomplacente. Não há em toda a obra deste grande inquieto uma só concessão cobarde à exclusiva responsabilidade dos «sistemas» e à inocência programada das «pobres vítimas»:

Culpados todos — porque não dizê-lo
em vez de acusações que nada salvam?

É que isto, por outro lado, também não exclui — e já o dissemos —, a invasora certeza que todos temos de uma vasta traição à escala universal:

(……….) Todos sentem
que foram ou têm sido sabotados,
traídos ou vendidos. (……….)

Simplesmente, para quem, militante ou não de um cristianismo mais, ou menos, ou nada oficioso, ou simplesmente cristão (sem militante), ou até, mais desnudadamente, para quem, ainda que não cristão confesso, viva, ainda assim, em consciência e profundidade, algumas das suas (do cristianismo) verdades e exigências mais profundas e universais —, não há traição dos outros que nos redima das nossas próprias. No território escarpado da nossa consciência última, ninguém se salva ou se condena com os outros. É esta, sobretudo, a agreste e viril mensagem que se destaca destes Natais inconformados, inquietos e inquietantes. Que este tom de uma austera moral cristã se desprenda das páginas de um agnóstico, ainda que profundamente impregnado de vivências cristãs, não deve surpreender-nos: «Não há cristão mais feroz», observava com argúcia Remy de Gourmont, «do que o cristão incrédulo, aquele que, tendo rejeitado todo o dogma, guardou, no entanto, toda a moral».

Há, nas páginas que seguem, uma tensa austeridade, mas que não é uma austeridade repousada. Em Sena, o «repouso» é um ingrediente que se caracteriza por estar ausente. Esta austeridade insere-se em agonia que significa, lembrou-o saudavelmente Unamuno, luta, que é como quem diz, vida. «Ao cristianismo», observava o autor de Del Sentimiento Trágico de la Vida, «há que defini-lo agonicamente, polemicamente, em função da luta».

Neste desespero de denunciar um Natal que não há, por não termos sabido edificá-lo, converge subrepticiamente, no «Cartão de Natal» enviado a Sidónio Muralha, um outro igualmente antigo que é o de um «Portugal que [também] não há» porque, por um lado, se está longe dele e, por outro, não temos sabido fazê-lo em termos de grandeza, dignidade e universalidade.

* * *

A Saulo, chefe dos cristãos perseguidos, que implorava do Marco Semprónio, do conto de Jorge de Sena, tolerância e caridade, responde este último com céptica bonomia e milenária sageza: «Saulo, eu na verdade não tenho influência alguma. Farei o que puder».

A agonia, que é luta, e se trava, inquietante, ante os nossos olhos a um tempo fascinados e aterrados, nestes poemas de Natal do cristão agnóstico que foi o autor sulfuroso das Andanças do Demónio, não terá, porventura, influência nenhuma nos actos dos que, diariamente, retomam a encenação ritual do Natal Assassinado. Pouco do que se escreve ou diz, ainda o melhor, deixa traço impressivo na conduta dos homens. Em todo o caso, com ou sem influência, como Marco Semprónio, romano désabusé, Jorge de Sena fez o que pôde.

Londres, Fevereiro de 1980.