Jorge de Sena é autor muito presente nas referências e escolhas de Maria Alzira Seixo (professora e investigadora da Universidade de Lisboa cujo extenso Curriculum Vitae é sobejamente conhecido). Por exemplo, no volume que lhe coube da série Os poemas da minha vida, editada pelo Público em 2005, não falta o poeta, bem representado pelo excepcional "A morte de Isolda", de Arte de Música.
E, embora declare "Eu NUNCA escrevi sobre o Jorge o que eu queria — nem sobre O Físico, nem sobre as Andanças. É como o Proust. Do que mais gosto, nem sempre consigo escrever", certo é que são de sua autoria algumas páginas de reflexão crítica indispensáveis numa bibliografia consistente sobre o nosso autor. Prova é o texto abaixo, "Jorge de Sena e a poética do lugar", publicado originalmente no JL-Jornal de Letras, Artes e Idéias, em junho de 1988, que sinaliza eixos semânticos relevantes a pontuarem a poesia e a ficção senianas, e a guiarem o leitor por caminhos seguros na sua apreensão interligada.
É possível fazer uma leitura da obra de Jorge de Sena que dê conta da essencial projecção que nos seus escritos tem, em sentido temático, vivencial e estrutural, a questão do lugar.
Partamos de Exorcismos (1972):
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é pó de raiva com que se envenenam?
Algumas das linhas temáticas da poesia de Jorge de Sena apontam neste conjunto de versos: a problemática da esperança e do lugar, encarado o lugar como possibilidade fundamental de habitação, de ocupação do espaço físico por forças e intensidades humanas, e concebida a esperança como possibilidade de fundação desse lugar de sonhado, marca física de um futuro que só concretizado em espaço se pode apreender, um espaço que é reduto e medida do homem; a problemática da pátria, que no fundo quase iguala a de todo o ser e objecto amado, e que é desejada e simultaneamente repelida pelo desgosto de não ser o que dela (deles) se espera; também nestes versos se manifesta a conjunção de sentimentos entre a consciência subjectiva do poeta e uma espécie de consciência colectiva de que ele assume os gerais anseios (povos, classe, história); assim como uma dinâmica convulsa da auto e da heterodestruição, que quase sempre assume na sua poesia uma dimensão libidinal e agressiva específica; o apelo a uma imagística do quotidiano disfemístico e simultaneamente simbólico (a referência às baratas e ao veneno), como elo entre planos diversos de uma realidade que o poeta pretende seja apreendida como una porque complexa e conflituosa; e, finalmente (mas não se esgota decerto aqui o sentido destes versos), a violência semântica que exige termos lexicais paroxísticos, expressões vibrantes de sentimentos fortes, demonstrativos (o "pó de raiva" que combate a "espera"). Demonstrativa é também a articulação significante do texto, onde a capacidade de mostrar se junta à de evocar e à de persuadir, através das interrogações reiteradas, dos paralelismos irregulares e de um uso da retórica tradicional que constantemente e insolitamente se interrompe, criando efeitos de ruptura de que o mais sensível é talvez a quebra do canto poético por ímpetos discursivos de carácter ético ou pedagógico que abalam a toada lírica habitual.
Mas neste mesmo livro encontramos a expressão poética de um intimismo completamente diferente, embora como o atrás exposto se irmane por uma idêntica preferência pelas situações extremas da opção ou do destino ("Direi um dia o infinito breve/ da carne prometida", Conheço o Sal…). Mas a tonalidade é agora de repouso, de pensamento quieto e nostálgico, de desprendimento da miséria concreta para uma projecção de absoluto ("Há que deixar no inundo as ervas e a tristeza/ e ao lume de águas o rancor da vida./ … / Levar connosco em ossos que resistam/ não sabemos o quê de paz tranquila", Conheço o Sal…) e o desejo de um futuro diferente é já a manifestação do sonho possível, no qual se dissolve a "fúria" de uma contradição interior irresolúvel e permanente.
Mas como eu amaria
o regressar tranquilo
à paz de outra guerra
(…)
puramente fiel
a este regresso em fúria
de sem idade tê-la.
Exorcismos
O amor e o tempo, ligação fundamental de toda a vibração lírica através das eras, encontra também em Jorge de Sena um núcleo semântico de rara felicidade na expressão verbal. E nunca se chega a saber se o tempo é apenas esse transcurso de si e do colectivo pelo espaço onde nos é dado viver, ou o sentido totalizante da existência na sua forma física total, de intensa pujança e dramatismo; como nunca se chega a saber também se o amor é essa essencial ligação de si a si, ao outro e a tudo, ou, para além disso, a própria definição de estar no mundo em atitude de recepção intensa de todo o sentido do existente e de dádiva completa do projecto de sensibilidade e de inteligência que nos anima:
Que dizer destas sombras
encostadas na noite às árvores e à névoa?
Que dizer-lhes de nós
(…)
Que algures no mundo ou junto delas
os amantes se tocam, se procuram?
Que a morte continua (…)
Que as folhas caem, ervas reverdecem
(…)
E que as sombras ilusórias, pressupostas,
sonhando entre o arvoredo o que não sabem
ser tão diverso e desigual, não contam
entre o que existe e não existe?
Exorcismos
Porque em Jorge de Sena a interrogação não é uma forma de se mostrar hesitante, mas a marcação veemente de uma revolta; em Jorge de Sena o não saber nunca é uma forma de ignorar, mas de saber o um e o outro, o sim e o não, de oscilar entre duas certezas que divergentemente atraem, repelem ou dilaceram.
Deste equilíbrio instável, ou melhor, desta sedução pela diferença, desta consciência dos abismos de nós e dos mundos, dá conta, de uma maneira ou de outra, toda a imensa e multímoda obra do escritor; mas é talvez em O Físico Prodigioso, esse texto de ficção ímpar e irredutível a sentidos unos de explicações parciais, que essa consciência de modo mais rico se afirma. Prodigiosa criação física do livro como instância objectual, este texto concentra, como já foi manifestado em certos estudos, a problemática do duplo, da sobreposição e dos contrários, da transformação, do retorno e da identidade – numa polivalência de modos do ser e do estar que acabam por significar a essencial apetência de tudo por parte da natureza humana em relação a tudo o que ela pode entressonhar no espaço que a rodeia, no corpo que lhe fala, no divino que a comanda ou tenta. Daí que este livro desenvolva a temática da permanência e do abandono, da vitalidade e da destruição, a partir das situações ficcionais (se considerarmos a narrativa) ou dos modos anímicos e simbólicos (se considerarmos personagens ou tempos de discurso) do partir e do ficar. Entre estes dois termos se situa a fixação ao nome, reduto de estabilidade maior que a do lugar, a não ser quando não existe, o que é justamente o caso, e por não existir relaciona a mais completa quietude com a mais feroz inquietação.
— Não sei o teu nome. Como te chamas, meu amado?
— Que adianta o meu nome? (…) eu mudo de nome por cada terra e por cada castelo onde passo. (…) Que nome me vais dar?
— Nenhum… Porque entendo que me falas como habituado que estás a partir, deixando atrás de ti um nome que te não pertence mais do que tu pertences àqueles a quem deixas uma memória benéfica e formosa. Mas daqui tu não vais partir.
O Físico Prodigioso
A relação de fixação parece aqui ser secundária, e o nome, coincidência entre ser e aparecer (e a aparição é muito importante neste físico que tem dotes de invisibilidade que o salvam de muitas desgraças, embora não de todas, não da de ser, justamente),o nome é um acidente Individual num destino colectivo que a personagem do físico, anjo ou demónio, essencialmente expõe e desenvolve. Nao é este o lugar para comentar a relação que se estabelece entre esta questão do nome e a problemática do amor e da solidão a que ele no texto está intimamente ligado; basta dizer que o amor implica sempre liberdade e que a solidão se não identifica com ausência de companhia nem com a ideia de separação do par amoroso, figuração sentimental que não é das menos originais em Jorge de Sena. O que neste momento nos interessa sublinhar, e que se articula com a problemática que vínhamos analisando na sua poesia, é a existência do nome só para aqueles que partem, e só como memória portanto permanecem, e a necessidade do inominável para a relação pessoal íntima, para a fusão de comunicação, para o entendimento perfeito dos seres que assim são um. Se possuir é sempre fazer do outro um objecto, um objecto que se subjectiva para por sua vez nos objectualizar, e nessa relação de igualdade se ama, o nome sujeito desaparece quando o amor se sobrepõe ao lugar e só aparece quando é o lugar que conta, imensidão onde o nome se perde e procura em vão impor-se. Pode dizer-se que, de certo ponto de vista, esta problemática do nome e do lugar é crucial na obra de Jorge de Sena, porque ela percorre a maioria dos seus livros de ficção, de poesia e de teatro, e porque representa a definição de si e o encontro de si com o mundo, encontro sempre dramático, sempre empenhado e necessário no esforço de construção concreta e especulativa que sempre o animou e onde o outro – o amor, a amizade, a simpatia, o sentimento que nos provoca todo o próximo – vem permitir a sensação feliz de um acerto pacífico e luminoso.
E o espaço fica — ah fica — e ninguém ousa
mais que espreitar a medo para dentro dele
pelas grades de um verso em que palpita a vida,
tão pura e tão ausente como quando um dia
primeiro ela vibrou num cheiro de maresia,
ascendendo das águas, luminosa,
num corpo ainda escamoso cuja pele
seria este sabor de espaço e de ternura
em solidão perfeita descobrindo o amor.
Conheço o Sal