Considerando que falamos do poeta que se colocou a serviço do testemunho, poderíamos nos perguntar qual o espaço que ocupa, bem como o papel que desempenha, o dinheiro na obra seniana.
Dinheiro é tema que perpassa a obra de Jorge de Sena, evidenciando diversos modos de relações entre as pessoas. Comparece como medida de valor, frequentemente para marcar a desvalorização do ser humano. É o caso, por exemplo, do poema “Rendimento”, datado de 1946 e publicado em Post-scriptum, de 1961, no qual temos demonstrada a necessidade de pedir esmolas por parte de um adulto, que “No regaço, e protegido pelos joelhos agudos,/ tinha um boné no qual/ esmolavam os transeuntes.” (SENA, 1961, p.183). A essa esmola chamarei de dinheiro-humilhação, que aponta para a importância do dinheiro na nossa sociedade. Podemos observar na cena a inscrição de um desconhecido, do qual também se indicia a falta de saúde, fator cuja principal consequência — tema central no poema — é o impedimento para o trabalho, o que inviabiliza o atendimento das necessidades básicas para a manutenção da vida em condição minimamente digna.
O fato de se estar empregado, como o taxista de “Lisboa, 1971”, por sua vez, não traz a solução para a questão do sustento, visto que pelo trabalho não se obtém a quantidade de dinheiro suficiente para atingir tal objetivo. Como um bom capitalista, “(…) o patrão conta/ que ele se arranje do a mais com as gorjetas.” (SENA, 1989, p. 173/4) Apropriadamente, este poema aparece num livro intitulado Exorcismos. Aqui temos um dinheiro problemático, visto que, embora de origem lícita, não implica obrigatoriedade por parte do cliente, e torna-se, pois, necessária a denúncia. Considerando o fato de que o poema é localizado num tempo específico, já desde o título demarcado, e posteriormente reforçado por uma cifra específica num verso, constitui um importante testemunho das mazelas do sistema então vigente.
O chamado “vil metal” presta-se, por outro lado, aos seus usos habituais, como a aquisição de objetos e a contratação de serviços. Por exemplo, as noitadas com prostitutas que podemos ler no romance inacabado Sinais de Fogo, assim como, neste mesmo romance, o custeio do deslocamento e dos mantimentos, já que é necessário conseguir dinheiro para financiar a fuga dos dois espanhóis escondidos na casa do tio do protagonista Jorge, por ocasião do início da Guerra Civil Espanhola.
A produção poética de Jorge de Sena abarca um longo período, em que acontecem inúmeras transformações no mundo. Isto nos permite encontrar o dinheiro indiretamente relacionado ao trabalho, mesmo em profissões não convencionais, como os “não actores” que “se alugam para filmes/ da mais brutal pornografia crua”, no poema “Filmes Pornográficos” (SENA, 1989b, p.210) — testemunho do surgimento da indústria do cinema pornô, a explorar um nicho de mercado. Estes funcionários “(…) só fazem/ tudo o que possa imaginar e a sério/ com a máquina espreitando bem de perto”, e aqui o que causa espanto é a transformação da observação do ato sexual num produto, num bem monetariamente mensurável e, portanto, passível de comércio; sem falar na mais-valia gerada por esta atividade, na qual seres humanos são transformados em espetáculo, não sua atuação. Outros trabalham na filmagem, outros ainda na bilheteria das salas onde o filme deve ser exibido, e o direito de assistir a uma mesma fita será vendido a diversos espectadores, gerando assim lucro, inúmeras vezes.
Convoco para esta questão Bertolt Brecht, quando nos lembra de que vivemos sob certas construções humanas, particularmente modelos econômicos, que não são naturais. O advento do dinheiro, enquanto elemento que permitiu maior mobilidade aos indivíduos, já que não precisavam, por exemplo, de ficar presos à terra para usufruir de suas posses, constitui-se também num fator de transformação profunda nas relações sociais. Voltando a “Filmes Pornográficos” (SENA, 1989b, p.210), temos o surgimento de novas relações profissionais para a obtenção de tão inusitado produto, simplesmente pelo inegável fato de que, no capitalismo, pretende-se que o dinheiro possa comprar tudo. Isto nos remete aos versos finais de “Tudo é tão caro”, pois, de fato, considerando que nem tudo esteja à venda, “nem mesmo com possuir/ eu poderei pagar-te.” (SENA, 1989, p. 69).
Temos, ainda, uma das formas iniciais de dinheiro, no sentido de instrumento de medida social de valor: o sal, de onde surgiu o vocábulo salário, como é de conhecimento geral. Jorge de Sena, em “Conheço o sal”, de 1973, soube expressar a idéia do valor de um relacionamento entre um casal, a marca daquela convivência entre os “amantes enlaçados” (SENA, 1989, p.232) do verso final, definidora do conhecimento de ambos sobre cada um, ao longo de muito tempo. Algo que não tem preço e, por isso mesmo, vale mais ainda.
Num sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção e acumulação de bens materiais, no qual autor e obra estão inseridos, o dinheiro opera tal como a chave que abre todas as portas. Sua ausência cumpre, assim, o papel de instalar o espaço da pobreza material ou denunciar a desigualdade social em que se estrutura uma sociedade. Sena o desmascara, no entanto, em “Ode aos livros que não posso comprar”, a partir de uma (não) metáfora, conforme escreve Luis Maffei, “Simples como isso:” e cita os versos iniciais do poema: “Hoje fiz uma lista de livros,/ e não tenho dinheiro para os poder comprar.”, e completa: “uma afirmação que poderia estar fora de um poema. Mas não está.”(MAFFEI, 2009, p. 157). Aqui não se lamenta a impossibilidade da atitude consumista, mas “(…) preciso de comprar alguns livros,/ Uns que ninguém lê, (…)/ Para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles”, sinalizando que o caminho para a suplantar a “minha vida difícil” (SENA, 1989, P. 143) extrapola o que o dinheiro possa comprar. Para tal existe a a arte, aquilo que pode haver de mais humano feito por nós.
“Jorge de Sena nunca escreveu nada em que não se escrevesse.” (LOURENÇO,1999, p. 44), escreveu Eduardo Lourenço, e aqui comparece o “Lamento de um pai de família”, cujo início cito: “Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma/ ser poeta …”. É interessante notar que, embora o vocábulo não apareça em momento algum neste poema, a falta de dinheiro é o que se está lamentando, notadamente pela “(…) miséria que me dão e querem dar a meus filhos,(…)” o que, para além de um possível dado biográfico, compõe um forte testemunho da angústia de viver entre aquela parcela de excluídos do sistema, “o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria (…) à penúria absoluta, para produzir um rico” de que falava Almeida Garrett. (GARRETT, 2008, p. 25).
O capitalismo, como sabemos, não inventou a exploração do homem pelo homem. Sena, leitor de Camões também, o sabia. Além de sua obra poética, Jorge de Sena dedicou-se anos a fio à obra de Camões, revolucionando a leitura do vate quinhentista, sobretudo por demonstrar que “Camões não é o pastelão patriótico-clássico que durante anos tem sido.” (SENA, 1970, p. 11), segundo suas próprias palavras. Sena atribui um novo valor àquele que, em sua obra maior, refletia sobre o significado e consequências do audacioso projeto expansionista e mercantilista, projeto que, assim como no capitalismo, poderia enriquecer muito poucos em detrimento da miséria da maioria.
Assim, chegamos a “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, escrito em 1961, poema no qual o poeta dá voz a um Camões que amaldiçoa, em versos como “Não importa nada: que o castigo/ será terrível.” (SENA, 1978, p. 99), aqueles dos quais não obteve recompensa de espécie alguma em vida, assim como aqueles que virão a roubá-lo. Recompensa e roubo têm relação com dinheiro, pois somente algo de valor pode funcionar como prêmio, bem como ser atrativo para ladrões. Do pouco que sabemos sobre Luis de Camões, é certo que nada lucrou com seus escritos. No conto “Super Flumina Babylonis”, o maior escritor da língua portuguesa é apresentado por sua mãe como o “filho envelhecido e doente” (SENA, 1966, p. 155), e ele a ouve dizer que “isso de poesias nunca dava nada a ninguém” (SENA, 1966, p. 164). Camões está na miséria, com a tença atrasada, e eis aqui novamente a falta de dinheiro marcando o espaço da pobreza.
Jorge de Sena, num de seus famosos prefácios, diz o que considera ser tarefa dos escritores: “num mundo onde as vidas se tornaram tão baratas que podem ser gastas por milhões, aos escritores cumpre resistir.” (SENA, 1988, p. 22). Em sua obra, Sena abordou o dinheiro visando à resistência e à supremacia do humano sobre a “vã cobiça” (Lus, IV, 95, 1), que ainda anda pelo mundo, onde “tudo é tão caro”.
Bibliografia
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora; 1980.
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. São Paulo: Martin Claret; 2008.
LOURENÇO, Eduardo. Viagem no imaginário crítico de Jorge de Sena in SANTOS, Gilda (org.). Jorge de Sena em rotas entrecruzadas. Lisboa: Edições Cosmos, 1999, p. 43-50.
MAFFEI, Luis. O dinheiro como metáfora ou a (não) metáfora do dinheiro em dois poemas de Jorge de Sena. Gragoatá n.26. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense – Niterói: EdUFF; 2009, p. 155-170.
SANTOS, Gilda (org.). Jorge de Sena em rotas entrecruzadas. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.
SENA, Jorge de. A estrutura de “Os Lusíadas” e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI. Lisboa: Portugália Editora;1970.
_____. 40 anos de servidão. Lisboa: Edições 70, 1989.
_____. Novas andanças do demônio. Lisboa: Editora Círculo de Leitores, 1966.
_____. Poesia I. Lisboa: Livraria Moraes Editora, 1961.
_____. Poesia II. Lisboa: Livraria Moraes Editora, 1978.
_____. Poesia III. Lisboa: Edições 70, 1989.
_____. Sinais de Fogo. Lisboa: Edições 70, 1984.