Este ensaio do Professor Eduardo Lourenço foi publicado em 1988 nos Arquivos do Centro Cultural Português, de Paris, numa "Hommage a Jorge de Sena", motivada pela então lançada tradução francesa de Sinais de Fogo (de Michèle Giudicelli), nos exatos 10 anos de falecimento de seu autor. Tanto quanto foi possível averiguar, não teve reedição este breve e fundamental texto lourenciano. Por isso, dada a relativa dificuldade na consulta, aqui o disponibilizamos, graças à sempre generosa aquiescência do nosso Mestre-maior.
Sob tudo quanto Jorge de Sena escreveu sente-se o aguilhão da necessidade e do tempo. Talvez menos pelo pressentimento de que o tempo lhe estava contado do que por saber que duração alguma da vida bastaria para exprimir o tumulto, a violência interior que o avassalavam sem o submergir. Da circunstância, sem delongas para a contemplar ou se macerar nela, fez uma poética, e com essa poética uma das obras de maior poder de interpelação e fascínio que a segunda metade do século XX nos legou.
A primeira vista, o seu romance póstumo e inacabado, Sinais de Fogo, parece escapar a esta estética, ou antes, poética da urgência. A urgência aqui parece diferida e diferida para sempre. Mas só a história interna da escrita de Sinais de Fogo, se historicisticamente lida, pode sugerir essa excepção ao que foi sempre, nele, exigência de vida e regra de escrita. Das três ou quatro vagas de composição de que resultou o inacabado texto Sinais de Fogo nenhuma delas escapa ao ritmo imperioso, e não poucas vezes imperial, que Jorge de Sena impôs sempre à sua criação. Nem lentas agonias, nem torrenciais explosões seguidas de remorso ou arrependimento. Houve sempre em tudo quanto Jorge de Sena escreveu uma mistura muito sua de voluntarismo e de extremo domínio do que em outros tomaríamos como irrepresível inspiração. Todavia, neste seu primeiro e único romance, talvez pelas contingências da sua elaboração, há como que duas tonalidades ou dois ritmos que fazem desta epopeia iniciática de uma geração – mas sobretudo da recriação quase num tempo sem passado de um destino extraordinário de criador – um longo rio com duas águas de cor diferente. Impressão tanto mais estranha quanto o tempo da história contada em Sinais de Fogo é um tempo breve, na ordem da cronologia exterior e só tempo de intensidade incomum enquanto vivência do narrador e personagem. A essas duas cores corresponde a um nível mais profundo o descentramento de Sinais de Fogo entre o essencialmente anedótico, por mais interessante que seja, desde a descrição das amizades juvenis à peripécia rocambolesco-revolucionária em que o personagem principal se encontra envolvido, até a história passional de Jorge e de Mercedes, com ela entrelaçada mas vivendo de uma vida própria e configurando um romance no interior do romance.
Voluntariamente datado ou inscrito entre referências da história política portuguesa e peninsular (começos da Guerra Civil espanhola e reforço da componente fascista do regime de Salazar) paradoxalmente, Sinais de Fogo é uma ficção sem data. Se tem uma é a do olhar do narrador, não como jovem, confrontado com os mistérios, as repugnâncias, as contradições políticas ou ideológicas de uma época precisa, mas como autor em plena maturidade que evoca como se estivesse no presente da sua escrita (de 1964 a 1967) o momento da sua iniciação na vida e sobretudo naquela particular maneira de estar nela que o convertiria em Poeta. Jorge de Sena transporta-se – e transporta-nos – para o passado como se fosse um presente, tumultuoso, estranho, cruel e mágico, um presente fluindo em si mesmo, envolto na sua própria opacidade, com personagens que não têm ainda mais perspectiva do que a da romanesca aventura em que estão envolvidos. Todo esse lado de ressurreição de uma peripécia histórico-individual importa pelo talento com que Jorge de Sena, quase fotograficamente, sem nostalgia inútil, como se estivesse ainda vivendo a sua aventura, a restitui. Por momentos, o detalhe, a micro-história quase se fecha sobre si mesma, a perspectiva geral perde nitidez, mas o nosso interesse fixa-se na multidão das personagens da saga do autor em vias de inventar a sua vida, personagens com algo de imprevisível ou de fantástico como é natural na adolescência ou fora dela no mundo pícaro em que o nosso herói evolui.
Mas não é como “quadro”, pintura de uma época, mesmo de uma tomada de consciência histórica e ideológica de um período conturbado da vida portuguesa que Sinais de Fogo merece o título de “grande livro” mais ainda do que de “grande romance”. Jorge de Sena, já notável poeta nos anos 40, não teria podido então descrever com a acuidade rara com que o faz em Sinais de Fogo o labirinto amoroso, espaço de fúria, de êxtase, mas sobretudo de busca do que não se encontra ou encontrado sossobra [sic! Deve ler-se soçobra] no dilaceramento, antes de se ter convertido no homem de experiencia longamente amadurecida pelos anos e pela imersão no imaginário romanesco do Ocidente que lhe foi familiar como a ninguém mais da sua geração. Todavia esse peso de memória e conhecimento antes o teria talvez manietado do que servido se a sua violência imaginativa, a sua audácia não o tivessem levado como que a esquecer pouco a pouco a peripécia exterior da sua aventura para o deixar nu e desarmado diante do seu próprio destino antevisto e desejado com uma veemência profética como o do futuro autor de tudo quanto fará dele uma personalidade única das letras portuguesas do nosso século. Posterior no tempo da escrita, Sinais de Fogo é a crónica-romance da invenção de si como Jorge de Sena, como grande poeta, mas igualmente como autor de textos inesquecíveis que são os contos Super Flumina Babilonis ou o Físico Prodigioso. Mas o que nestes contos nos aparece já como inscrita numa espécie de espaço mítico da nossa ficção, descobre aos olhos do leitor de Sinais de Fogo as suas raízes, ou melhor, o seu enraizamento num combate simultaneamente espiritual e sensual, cruel e delicado, simples e complexo, assumido com uma vontade de desnuamento, de clarificação da sua relação consigo e com os outros e o mundo de uma força sem exemplo nas nossas letras. Jorge de Sena não desceu ao inferno das suas pulsões e dos seus terrores para resgatar uma Euridice mediadora entre ele e o mundo, mas para libertar nele o prisioneiro que pedia um mundo para submeter ao seu génio desabrido o seu pavor. Sinais de Fogo é o memorial dessa travessia que não tem outro fim que o de descobrir em si os dons que nele o redimam de uma solidão humana para o deixarem a braços com a musa mais exigente e cruel que todas as solidões, musa que lhe exigirá todo o tempo eterno da sua futura vida. Dessa travessia saiu o Poeta capaz de converter os estigmas da sua vida real em sinais de fogo. Mais do que um dos raros grandes romances de amor da nossa literatura – paradoxalmente parca em romances de amor – Sinais de Fogo é a incomplacente biografia de um poeta destinado pelos deuses a sagrar-se poeta pelas suas próprias mãos, como o Indesejado, rei sem mais coroa que a imaginária. A raros como a Jorge de Sena a ficção serviu de reino para ser nele o filho das suas próprias obras e o rei de si mesmo.