Dando prosseguimento ao projeto de um Dicionário de Jorge de Sena, apresentamos aqui um novo verbete: O Diabo, observado em suas múltiplas facetas na obra do poeta, do ficcionista e mesmo do crítico Jorge de Sena:
Câmara Cascudo, nos verbetes “demônio” e “diabo” de seu Dicionário do Folclore Brasileiro, lembra que
"no politeísmo grego era entidade protetora ou maléfica: um Bom Diabo (Agathodaemones), que Sócrates dizia ser a esposa Xantipa, ou um “Mau Demônio” (Cacodaemones), ficando nesta acepção entre os cristãos. (…) em Portugal se começou a inventar apelidos para o diabo, o que constituía a maneira de lograr o demo, pois, segundo a crendice, mencionando-se o seu nome, ele poderia aparecer e 'fazer das suas'”[1].
De tais afirmações, duas idéias centrais merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, a noção do diabo como uma figura de múltiplas possibilidades, transitando entre a proteção e a tentação, sendo rotulado pela “propaganda da oposição” como um ser unilateral, inequivocamente perverso. Em segundo lugar, a íntima ligação entre o ser e a palavra utilizada para designá-lo. A cultura popular, uma vez doutrinada a ver no diabo a imagem do “outro” a ser temido e combatido, passa a evitar o uso de seu nome por atribuir-lhe uma função invocatória.
Listando as possíveis nomenclaturas empregadas no trato à inominável criatura, Câmara Cascudo levanta uma interessante possibilidade etimológica: entre as denominações populares consta a forma “dianho”, a que o folclorista se refere como uma corruptela de Dianus – Jano, deus romano de duas faces, responsável por aberturas e portas. Dentro do mesmo verbete, propõe ainda que a forma “oficial”, diabo, seja uma variação do tal apelido, uma evolução do galaico diañu [2]. Assim sendo, teríamos preservada no vocábulo a dualidade pré-cristã do diabo: associado a um deus dual e ambivalente que observa a um só tempo o passado e o futuro, ele acaba por ocupar espaço e função semelhantes. Mesmo se considerarmos a raiz grega do vocábulo – diabolos – tal sentido permanece preservado, afinal, “dia – bolos” é aquilo que é “lançado”(verbo βαλειν) “através”(δια-), o que significa que a tão temida palavra, potencialmente capaz de materializar o indivíduo a que se refere, guarda as histórias de um deus multifacetado e de um anjo caído – lançado através de espaços e do tempo, eternamente em movimento (porque expulso, exilado) e eternamente em busca. Se o diabo é a palavra que o representa, ele é isso: ambigüidade, deslocamento, travessia.
De acordo com as tradições populares de diversos grupos culturais em diferentes espaços e épocas, a autoria da Criação supostamente divina pode ser contestada. Como registra Mircea Eliade em suas investigações sobre os mitos cosmogônicos, vários apresentam uma interação entre Deus e Diabo, sendo este apontado como uma espécie de co-autor da obra de um Deus solitário e desprovido de criatividade [3]. Em inúmeras variantes mitológicas, um Deus consciente da própria impotência cosmogônica ou mesmo sem a imaginação necessária para construir o mundo recorre ao Diabo, pede ajuda, propõe acordos àquele que acaba por ser o “idealizador do projeto”. O Criativo por trás do “Criador”.
O diabo é uma presença recorrente na obra de Jorge de Sena. Em sua obra ficcional, primeiro aparece em Gênesis, livro de contos de um ainda jovem escritor. Em “Paraíso Perdido”, os anjos flagrados por Deus em extremo ato de desobediência, atacando os frutos proibidos da árvore do Bem e do Mal, são condenados à transformação em diabos, mandados diretamente ao inferno. Um deles, Lúcifer, recebe novo apelido – Satanás – e é nomeado o “líder” dos demais. Mais tarde surgiriam as Antigas e Novas Andanças do Demônio, livros de contos com um título de inspiração diabólica, embora o personagem seja substituído por uma variante mais ambígua: o demônio, versão moderna do antigo daimon greco-latino, entidade que Sena toma para si como uma espécie de parceiro criativo, forma masculina (ou andrógina) das musas, a quem vez por outra invoca (como no poema "Homenagem a Sinistrari (1622-1701) autor de De Daemonialitate"). Com O Físico Prodigioso, novela que tem como protagonista uma espécie de daimon, temos o diabo mais estudado da obra de Sena.
Na poesia, o exemplo mais evidente seria Exorcismos, livro dos últimos escritos por Jorge de Sena, em que mais uma vez a presença do diabo – ou sua expulsão – aparece já no título. No prefácio de Poesia-III, a descrição do poeta dá a ver o quanto a ambigüidade e a duplicidade de sua escrita são por ele vivenciadas num sentido muitas vezes biográfico, movido pela questão do exílio, por exemplo – “com Exorcismos (1972) (…), de novo cerca de 60 poemas se me reuniam em complexo volume que não podia deixar de reflectir a condição de andarilho que tem sido a minha…”[4]. Sobre tal complexo e demoníaco volume, escreve Helder Macedo:
"alguns dos poemas mais admiráveis desse admirável livro são, de fato, no sentido mais exacto da palavra, “exorcismos” – esconjuros de demónios, executados com um dom de invectiva que não destoaria junto das mais ferozes “cantigas de escárnio” da tradição medieval."[5]
O próprio Sena caracterizaria assim a sua experiência de mundo dual:
"Religiosamente falando, posso dizer que sou católico mas não um cristão – o que apenas significa que respeito na Igreja Católica todo o velho paganismo que ela conservou nos rituais, nos dogmas, etc., sob vários disfarces, tal como a Reforma protestante não soube fazer. Acredito que os deuses existem abaixo do Uno, mas neste uno não acredito porque sou ateu. Contudo, um ateu que, de uma maneira de certo modo hegeliana, pôs a sua vida e o seu destino nas mãos desse Deus cuja existência ou não – existência são a mesma coisa sem sentido. Filosoficamente, sou um marxista para quem a ciência moderna apagou qualquer antinomia entre os antiquados conceitos de matéria e espírito. Não subscrevo a divisão do mundo em Bons e Maus, entre Deus e o Diabo (estejam de qual lado estiverem). Apesar da minha formação hegeliana e marxista, ou também por causa dela, os contrários são para mim mais complexos do que a aceitação oportunista de maniqueísmos simplistas."[6]
Sem maniqueísmos, sem antinomias, sem um Deus Todo e Uno, adotando uma postura dialética onde outros optariam pelo dogmático, a obra de Jorge de Sena, como um espelho que reflete seu criador, mais que um exercício de aceitação de sua condição bifurcada, representa uma busca constante pela totalidade, pelo conhecimento de tom renascentista que lhe permita fazer uso de seu caráter de inerente ambigüidade para enxergar o todo, visível e invisível, grotesco e sublime. Uma busca pela sabedoria de testemunho e invenção do Diabo.
Os exemplos não se restringem, naturalmente, à porção “artística” da obra de Jorge de Sena, já que “as suas obras críticas e as suas obras de auto-expressão mais obviamente criativa constituem um todo feito de partes inter-relacionadas”[7]. Na obra crítica, como forma de escrita, a dualidade discursiva do diabo aparece representada, por exemplo, pelas notas de rodapé que se insinuam nos cantos do papel, seduzindo o olhar do leitor do texto principal como faziam os “diabos” do auto medieval, e que por vezes chegam a ocupar mais da metade da página. Tendo Jano duas faces, duas bocas emitem a um só tempo dois discursos que, por mais científicos que sejam, ainda guardam um certo (grande) desejo de subversão, o que faz com que seja absolutamente comum nos estudos de Jorge de Sena a existência de várias páginas dominadas pelo discurso “paralelo”. A disposição diabólica para criar, para romper com o previamente estabelecido, para arruinar conceitos solidificados pela ordem em busca de novas cosmogonias, de novos mundos possíveis, isto é, tudo aquilo que marca a invenção poética seniana, quando voltada para a produção de um discurso teórico ou crítico, faz com que, não apenas pelo conteúdo de suas idéias mas também pela provocação de sua estrutura textual, tudo seja questionável, questionado, e mesmo detalhes aparentemente simples e habituais em qualquer discurso dito científico, como o termo “nota de rodapé”, perdem totalmente o sentido, deixando de significar apenas um adendo ou esclarecimento subordinado ao texto principal, para incorporar a independência de um termo coordenado ao texto como um discurso lateral, mas auto-suficiente.
Entretanto, a participação do diabo na obra crítica de Sena não se limita à influência estrutural. Como “personagem” ou metáfora, ele aparece em várias leituras e ensaios. Por exemplo, entre os muitos e incansáveis estudos de Sena sobre Camões, não falta um olhar atento aos demônios do Poeta, em especial aos demônios d’Os Lusíadas. Em seu Estudos sobre o vocabulário de Os Lusíadas (Lisboa, Ed. 70, [1982]), Sena estabelece, a partir de um levantamento de citações e referências camonianas a figurações demoníacas e de uma detalhada investigação aritmosófica do que vai definir como "cautelas cabalísticas", uma leitura d'Os Lusíadas como "jogo vocabular" em que o uso "diabólico" da ironia constrói um texto perversamente dialético, no qual o homem é responsabilizado por seus próprios vícios e virtudes. Resumiria mais tarde seus estudos vocabulares em “Camões: Novas observações acerca da sua Epopeia e do seu Pensamento”:
"infernais como demónios serão os próprios portugueses, se o rei D. Sebastião os olhar quando lutam por ele. Curiosamente, é esta a única ocasião em que nos é servida uma descrição de quaisquer demónios: infernais, negros e ardentes. E o adjetivo é destituído assim de qualquer conotação diabólica real, para se tornar metáfora de uma metáfora. (…) De facto, demónio é daemonium do latim tardio, um helenismo, o diminutivo de daimon; e demo pode ser identificado com o originário daimon. Deste modo, Camões – para o intento determinado de fazer passar pelo censor, incolumemente, tudo o que se referisse a mitologias e magias – podia usar ambas as palavras para o Demónio que os outros teriam em mente, enquanto ele – mais sabido em Demónio et alia – assim retinha nos vocábulos o sentido helenístico deles: daimon significando qualquer espírito sobrenatural, e mesmo um deus como ingenuamente Fr. Bartolomeu Ferreira dissera, na sua licença, que todos os deuses pagãos eram (imagine-se o sorriso de Camões ao lê-lo), e o daemonium significando, de um modo ou de outro, todos os outros espíritos menores através dos quais Deus opera."[8]
Valendo-se do mesmo jogo de diferenciação entre os termos "diabo" e "demónio", numa escrita que defende a liberdade das bifurcações mas que depende ainda de alguns mecanismos de autopreservação, posto que, como o diabo, as inquisições se transformam e disfarçam de muitas formas, mas nunca deixam completamente de existir, a "teologia liberal" diagnosticada por Sena no texto de Camões serve a um propósito caro a Jorge de Sena: a configuração de um dialético espaço de intervalo, de suspensão entre maniqueísmos simplórios, em que se possa ver o todo e ter dele uma consciência "total". Sobre Camões, afirma que "o maniqueísmo camoniano é uma dualidade intelectualista de natureza dialética, em que o Bem e o Mal, a vida e a morte, a luz e as trevas, todos os opostos possíveis, lutam entre si e se harmonizam numa transformação perpétua de que renascem sucessivamente e continuamente"[9] – que nada mais é do que afirmar uma visão de mundo em que a única permanência é a metamorfose. E continua, dizendo que "aquela visão dialética da natureza mutável e permanente das coisas e do pensamento é o que possibilita filosoficamente que, na estrutura de Os Lusíadas, tudo possa significar duplamente o aparentemente oposto"[10] – que nada mais é do que afirmar uma forma de escrita em que o principal mecanismo é a ironia. Afirmação ética e estética do rosto de Jano, da figura andrógina e em travessia que é o diabo, da ambiguidade de caráter dos demônios.
Habitando o espaço intervalar que conduz o desejo racional de conhecimento e a vertigem maneirista decorrente da constatação das próprias impossibilidades dentro de um mundo em desconcerto, o Homo totalis em crise que é Jorge de Sena ao espelhar-se em Camões tem no diabo uma representação nítida de ambos. Talvez seja esta, aliás, uma excelente definição para o diabo: um Homo totalis em crise. Alguém que, recusando a Deus o papel central da tragédia cósmica, busque todas as respostas e toda a sabedoria por meio da experimentação, que o mesmo seria dizer por meio do testemunho.
Notas:
1. (Luís da) Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2001. p. 190.
2. Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2001. p. 195.
3. Mircea Eliade. Mefistófeles e o Andrógino. 2ªed. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.85-87.
4. Jorge de Sena. Poesia III. Lisboa: Edições 70, 1989. p.13
5. Helder Macedo, “De amor e de poesia e de ter pátria”. In: Trinta leituras. Lisboa: Presença, 2007. p.193.
6. Jorge de Sena. Poesia I. 3ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988. p.21
7. Helder Macedo, “De amor e de poesia e de ter pátria”. In: Trinta leituras. Lisboa: Presença, 2007. p.198.
8. Jorge de Sena, “Camões: Novas observações acerca da sua Epopeia e do seu Pensamento” (1972). In: —Dialécticas aplicadas da Literatura. Lisboa: Edições 70, 1978. pp.471-476
9. Jorge de Sena, Estudos sobre o vocabulário de Os Lusíadas. Lisboa, Ed. 70, [1982], p. 406. Grifo nosso.
10. Idem, p.407. Grifo nosso.