A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI (1970) é a recolha de uma série de ensaios publicados por Jorge de Sena ao longo da década de 1960, focados, como o próprio título indica, na epopeia camoniana e em poetas ibéricos quinhentistas. Juntamente com Uma canção de Camões e O soneto de Camões e o soneto quinhentista peninsular, A estrutura de Os Lusíadas compõe uma espécie de “trilogia” camoniana, fruto das intensas pesquisas feitas pelo poeta após tornar-se professor universitário no Brasil e nos EUA. Desse volume, publicamos agora excertos do primeiro capítulo, em que Jorge de Sena se debruça nos estudos genealógicos para verificar o parentesco de Camões com figuras importantes do Portugal de 1500, de modo a demonstrar que muitos dos personagens de Os Lusíadas têm algum grau de parentesco com o poeta épico. O texto é um grande exemplo tanto do nível de minúcia a que Sena chegava em suas investigações quanto da sua capacidade de articular diferentes informações para extrair conhecimentos novos e reveladores.
É geralmente aceite, à fé dos primeiros biógrafos, que a família de Camões veio da Galiza para Portugal, em tempo do rei D. Fernando I, na pessoa do fidalgo Vasco Pérez de Camões. Origem esta condigna e simbólica, já que Portugal se originou da Galiza, e a língua portuguesa se separou, em concomitância com a formação do que seria, para o período, excessivo chamar “consciência nacional”, do galaico-português. O supracitado fidalgo, trisavô do nosso poeta em varonia direta, foi, como se dizia, muito bem agasalhado do marido de Leonor Teles: em paga do que perdera na Galiza, por haver alinhado com ele contra Henrique II de Castela, o rei fê-lo senhor de alguma vilas como Sardoal e a que hoje se chama Constância (por soar obsceno o nome que tinha), deu-lhe herdades, e nomeou-o alcaide-mor de Portalegre. Por lealdade e gratidão à viúva de D. Fernando, mas sobretudo porque não entendeu a revolução de 1383 (já que outros, como o Mestre de Avis e o futuro Condestável, também não deviam pouco a Leonor Teles), Vasco Pérez seguiu o partido senhorial e da legitimidade, como conta Fernão Lopes, e foi dos que invadiram Portugal com D. João I de Castela, marido de D. Beatriz, a filha de Fernando e Leonor, e que foram derrotados em Aljubarrota. D. João I de Portugal não levou o perdão ao prisioneiro a ponto de deixar-lhe muitas das terras que tinha (precisava aliás muito delas, para a voracidade da nova nobreza que surgia, recrutada entre a pequena nobreza provincial e a burguesia nobilitada ou em vias de nobilitação), mas não o transformou em pobre [1]. Vasco Pérez ou Pires casara com uma filha de Gonçalo Tenreiro, capitão-mor das armadas de D. Fernando, e que chegou a ser capitão de Lisboa na defesa da cidade, ao tempo da revolução. Parece que também este quarto avô de Camões se sentiu tentado pelo partido da legitimidade, quando a supremacia do Mestre de Avis se talhava um trono. Do casamento de Vasco Pérez, nasceram dois filhos e uma filha. O mais velho, Gonçalo Vaz, casou com Constança da Fonseca, filha de Afonso Vasques a Fonseca, um filho de Vasco Fernandes Coutinho, senhor de Leomil, guarda-mor do rei D. Afonso IV. Uma irmã desse Afonso Vasques, Leonor Vasques Coutinho, foi a esposa de D. Fernando, senhor de Bragança, um dos filhos naturais do infante D. João, o filho de D. Pedro e D. Inês de Castro. Quando D. Duarte, senhor de Bragança, filho único de Fernando de Bragança e de Leonor Vasques Coutinho, morreu em 1442, foi com o senhorio dele que o regente D. Pedro criou o ducado de Bragança, para comprar a amizade do meio-irmão D. Afonso (que lhe pagou bem…). Mas o curioso é que Camões, ao celebrar Inês de Castro na sua epopeia, celebrava quem estivera genealogicamente ligada ao ramo mais velho da sua família, já que um neto dela fora tio de uma sua tia-bisavó: João Vaz de Camões, bisavô de Camões, era irmão daquele Gonçalo Vaz [2].
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António Vaz, o avô do poeta, casou com Guiomar Vaz da Gama, pertencente à família ascendida com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, aonde aliás este avô terá servido com Afonso de Albuquerque, antes de o sobrinho acima referido lá ter morrido. Daquela união nasceram o cancelário da Universidade e Simão Vaz de Camões, o pai do poeta, que, segundo uma tradição recolhida por Pedro de Mariz, 1º biógrafo de Camões, lá terá morrido também. A Índia era, não só por sê-lo ao tempo, mas, na própria família de Camões, uma forte presença direta e indireta. Mas há mais Índia na família, com bastante Norte de África, e umas conotações sensacionais.
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A multiplicação da aristocracia não produzira ainda a separação de classe, que se dará nos séculos XVII e XVIII (e culminará nas revoluções liberais do século XIX), quando essa enorme massa de aristocracia menor, cada vez mais separada de uma alta classe aristocrática que se fecha senhorialmente, se aburguesará, de mistura com a plebe urbanamente promovida. No fim do século XVI, a linha de separação estava mais abaixo, e uma ligação matrimonial burguesa, em vez de “degradar” o pequeno aristocrata, podia nobilitar os descendentes do casamento burguês dele. Mas era uma linha firme e nítida que não permite considerar Camões uma espécie de pretenso escudeiro à Gil Vicente, que aristocraticamente ele não era. Mas a vida dessa gente sem estado, sem comenda, sem morgado, sem senhorio, sem nada senão o parentesco, e impedida de qualquer trabalho que não o militar ou o administrativo (desde os regedores, governadores, escrivães, secretários, de que neste estudo encontramos tantos, aos pequenos postos de secretário do secretário, etc.), ou de servidor direto das casas dos reis (damas, moços de câmara, aias e aios, etc., e os maiores empregos desses eram para gente maior: mordomos, estribeiros, copeiros, etc.), essa vida não era fácil. Dependia constantemente de favores, de comissões, de tenças, ou mesmo de ofertas de roupa ou de comida, que eram hierarquicamente habituais (as rainhas davam os vestidos velhos às damas, etc.). Era uma miséria mal dourada, vivida ao deus-dará muitas vezes, e com as suas horas extremamente marginais socialmente, ainda que sempre na distância nobiliárquica com o povo, com quem mesmo a grande nobreza sempre teve tradições de saber roçar-se com gosto mútuo. Imaginar Camões como um cortesão, frequentador habitual de serões de corte, com entrada mais ou menos livre nos paços reais ou outros, é visão de românticos ou ridículo desejo burguês de promoção aristocrática coletiva (como Camões é “nosso poeta nacional”, todos entramos com ele nesses paços de que os antepassados da maioria de nós apenas varriam a porta de vassoura em punho ou lhes consertavam as alfaias). Imaginá-lo, por outro lado, apenas um pícaro (vejam-se os nossos Estudos de História e de Cultura, e os camonianos, acerca das confusões ainda hoje feitas entre o que picaresco seja para quem nunca leu as novelas picarescas, e as cartas de Camões, que refletem uma vida chocarreiramente vivida em alguma dissolução que não é maior do que a da juventude de qualquer parte e em qualquer tempo – só os “bons meninos” chatos é que, até à puritana e hipócrita extinção da prostituição, não visitaram tais profissionais ou não andaram em desordem com alguém –, mas que são sobretudo um género literário anterior ao “picaresco”) é ignorar, também em contrapartida romântica, a própria estrutura social da época e o lugar que Camões necessariamente nela ocupa, e que demonstramos como jamais o tinha sido. Entender que Camões não deve ser visto como mais do que foi, nem como menos do que podia ser, não é apenas uma prudente justa medida entre os delírios de José Maria Rodrigues e o pícaro de Aquilino, mas a lição da História. Mas o segundo exagero era imperativamente útil, ainda que feito sem compreensão do aristocratismo de Camões, e as reações de que foi objeto não o compreendiam melhor [18]. Camões era, como mostrámos, aparentado com a mais alta nobreza, parente da nobreza menor, e membro da multidão de nobres sem casa nem título. Viveu do que pingava de cima, como todos os outros que lhe eram iguais, e a ideologia a que adere é precisamente a da sua situação social.
Que de tudo isso tenha nascido um poema extraordinário (em que os amigos, os familiares, os grandes que protegiam uns e outros, são louvados por si ou por seus antepassados), eis o que releva do génio. Mas esta palavra é ainda romântica, ou pode sê-lo, e obnubilar-nos que este génio resultou da sua própria situação existencial de pequeno nobre sem eira nem beira, envolvido por condição numa aventura gigantesca que determina a sua visão da História, aventura que tinha sido e era obra precisamente dos filhos segundos e dos ramos segundos (já que os chefes das grandes casas raro saíram, no século XVI, dos remansos das suas casas e das suas rendas, ou do serviço direto dos reis), um dos quais rebentos ele mesmo era. Camões escreveu para cantar e glorificar esse seu mundo e para celebrar-se a si mesmo compensatoriamente: que o poema se tenha tornado nacional foi obra do espírito senhorial da nossa história portuguesa, que na epopeia se via promovido a filosofia da História Universal, e da vaidade nacionalista com que a sociedade burguesa e liberal do século XIX procurou absorver e fazer sua uma glória épica em que Portugal era representado apenas pelos seus senhores.
Quem é, na sua esmagadora maioria, esta numerosa multidão de duques, marqueses, condes, senhores disto e daquilo, comendadores, regedores de justiças, escrivães de puridade, mordomos-mores, governadores, capitães, etc., que constitui o lado genealogicamente dourado da parentela de Camões, juntamente com os descendentes, os primos, os primos dos primos, os cunhados e concunhados? Uma interessantíssima amostra da história portuguesa desde os fins do século XIV aos fins do século XVI. Mais: eles são a história portuguesa desses duzentos anos. Mas são os que tomaram partido contra D. João I por Castela, os que tomaram partido contra o regente D. Pedro e subiram titularmente na legião de condes que D. Afonso V criou, os que foram capitães da África e da Índia, os que aderiram a Filipe II em 1580, salvo algumas exceções. Não se podia demonstrar melhor o caráter senhorial da história portuguesa dessa época (1383-1580), com todo o seu heroísmo e com toda a sua sujeição ao serviço dos reis e dos grandes, nem melhor exemplificar a atmosfera que está na génese de Os Lusíadas. Um heroísmo e uma sujeição que, com ser de devotados servidores, não menos eram contrários a tudo o que não significasse uma lealdade que confundia a pátria com o senhor que garantia a tença, e garantisse também a consolidação da estrutura senhorial de corte, estabelecida pela dinastia de Avis, e que, em 1415, se lançou na espantosa aventura senhorial e comercial (centralizadamente comercial, em termos de capitalismo aristocrático) das descobertas e conquistas. Diz a tradição que Camões, ao saber do desastre de Alcácer Quibir, em que tantos dos seus pares e parentes morreram na mais amplamente senhorial das empresas (com que logicamente culminava a estrutura do século XV e do XVI), ficou como que em estado de estupor. Si non è vero, è bene trovato. Ele sonhara com um retorno idealizado às origens cavalheirescas da conquista do Norte de África, incitara D. Sebastião, vira todos os seus parentes correrem, de todas as partes do mundo, a participar numa empresa, ainda que alguns a condenassem (talvez também por verem que desviava os esforços do que para eles era a fonte de riqueza, a Índia), que era genealogicamente a deles todos. E tudo isso se saldava por um catastrófico desastre que abalou e comoveu a Europa, e que era, como dissemos, a coroação lógica da ideologia oficial do senhorialismo dominante. Na pequenez entre Castela e o oceano, criara-se uma sociedade cuja expansão era inevitável, sobretudo por ser, na verdade, como que uma tribo formada pelo entrelaçamento de várias famílias, e dependente dos reis e do serviço deles: nas câmaras reais, nas secretarias, nos campos de batalha, pelos mares adiante. Essa tribo reinava com o rei, sob pouco mais de um milhão de habitantes, cuja estrutura econômica e social estava condicionada por aquela expansão inevitável para dar ocupação e razões de tenças e senhorios aos membros da classe dominante. Essa sociedade era a ideal para a criação de um império, e precisamente pela mais antiga unidade nacional da Europa, em que se formara, a que primeiro esteve modernamente em condições de tentá-la. Mas as próprias condições que levariam ao império eram as mesmas que levavam ao desastre (e Camões, nas suas reflexões moralísticas da epopeia, é lucidamente consciente disso, embora lhes dê a idealização do gratuito heroísmo cavalheiresco como contrapartida redentora), mesmo que D. Sebastião não tivesse morrido em África. Se ele não tivesse lá morrido, outro teria depois dele. Os anos de 1580-1640 foram os da “sagesse”… E, em 1640, quando as vantagens senhoriais se veem ameaçadas pelo centralismo que derruía o mito da Monarquia Dual (com que “eles” haviam racionalizado as inquietações de separar independência e patriotismo), foi um “putsch” senhorial o que restaurou a independência. E quem o fazia eram os filhos e netos dos aderentes de 1580, e pelas mesmas razões.
Todas as genealogias que apresentámos estão publicadas: nos primeiros biógrafos de Camões, na História Genealógica da Casa Real Portuguesa (onde parece que nunca ninguém se lembrou de procurar os Camões que lá estão), em Braamcamp Freire, em diversos nobiliários, etc. [19]. O que nunca havia sido feito foi a correlação indispensável entre essas diversas genealogias, para ver-se quem é parente de quem, numa época em que tudo dependia dos parentescos. O mal da erudição do século XIX, por exemplo, foi não ter compreendido, nem querer compreender, por pseudoliberalismo burguês, as estruturas senhoriais de que se ocupava (tal como o nosso tempo, por plebeísmo promovido e pretensioso, corre o risco de não compreender a História de que depende), e ter aplicado as suas investigações, no caso de Camões, à construção hipotética de uma biografia que, para nós, não tem o mínimo interesse, já que a sua biografia são os seus versos, e em lugar de observar em que medida isso serviria, não para explicá-lo biograficamente e aos poemas, mas socialmente e psicologicamente.
Voltemos ainda a algumas observações genealógicas. João de Vasconcelos e Meneses, 2ª conde de Penela (†1551), casado com uma Ataíde, teve um filho, Afonso de Vasconcelos e Meneses, marido de Guiomar Soares, filha do governador da Índia, Lopo Soares de Albergaria. Bastardo deste Afonso com uma Góis, foi João de Vasconcelos e Meneses, marido de uma Catarina de Noronha ou de Eça, filha de António Gonçalves da Câmara e de Margarida de Noronha, dama da rainha D. Catarina. Este António, que foi caçador de D. João III, era sobrinho-primo da Inês Dias da Câmara, a esposa de Lopo Vaz de Camões, o primo direito do avô de Camões (António era filho de Pedro Gonçalves da Câmara – marido de uma Joana de Eça, e os Eças andam ligados, como vimos, à ulterior família de Camões – que era sobrinho da mãe de Inês, e neto de Gonçalves Zarco como esta). Filho de João de Vasconcelos e Meneses e de Catarina de Noronha é um Afonso (†1634) que casou com Sebastiana de Sá de Macedo (apelido idêntico ao da mãe de Camões), irmã de um Francisco de Macedo (de Alenquer, e os Camões estão ligados a esta região), que casou com sua sobrinha Maria, filha daquele casamento de sua irmã. Sebastiana e Francisco eram filhos de Sebastião de Macedo, que foi vedor da casa do cardeal D. Henrique, depois rei (e que encontramos, como de Alenquer, no livro de moradias de D. Manuel I, em 1518, entre os escudeiros-fidalgos – e pela data do registo terá nascido por 1509 ou antes, já que tal registo se fazia nesse tempo aos nove anos de idade), e de Guiomar de Sá. Também em 1518, naquele livro, encontramos um Henrique de Macedo, filho de Francisco de Macedo, de Santarém (de onde seria a família da mãe de Camões), igualmente entre os escudeiros-fidalgos, e que deve ser da mesma idade de Sebastião, o vedor. Nos fins do século XVI, certa Mécia de Noronha, filha de Francisco de Sousa (Beringel), e de Maria de Noronha (filha de Diogo Lobo da Silveira, 2º barão de Alvito, e de Joana de Noronha, e portanto enteada de Leonor de Vilhena, a irmã de Luís da Silveira, 1º conde de Sortelha, de Simão da Silveira, o poeta, e de António da Silveira, o herói de Dio, a qual Leonor foi segunda mulher daquele Diogo Lobo), era a esposa de Manuel de Macedo, capitão de Chaul, que pode ter passado a capitania a um parente próximo: Camões [20]. Toda esta gente está singularmente próxima daquela que vimos próxima de Camões, e o hábito nobiliárquico de as diversas linhagens se manterem ligadas por casamentos coloca Câmaras, Vasconcelos e Meneses, e Macedos (que eram também Sás) singularmente nas vizinhanças familiares do poeta. Aqui deixamos a sugestão de uma investigação rigorosa de Macedos, por certo frutuosa e conclusiva, aos amantes do papel velho [21]. Uma última sugestão também, e que nos permite encerrar este estudo. Francisco de Portugal, 1º conde de Vimioso, era filho bastardo de Afonso de Portugal que foi bispo de Évora, filho de Afonso, conde de Ourém e marquês de Valença, e de uma Távora (Afonso era o primogénito do duque Afonso de Bragança, e da filha do Condestável, e morreu antes do pai, razão pela qual o seu filho foi preterido na sucessão da Casa de Bragança, que passou ao tio, Fernando, conde de Arraiolos, que foi o duque Fernando I de Bragança). A mãe do Vimioso poeta e conde foi uma Filipa de Macedo (diga-se que Afonso ainda não era bispo então…), filha de João Gonçalves de Macedo, senhor de Melgaço, camareiro de D. João I (o pai daquele duque Afonso, como é sabido), e de Isabel Gomes Rebelo, filha de João Gomes Rebelo, senhor de Caria [22]. Entre os filhos do conde D. Francisco, um dos quais foi o poeta Manuel de Portugal, há uma Guiomar de Vilhena, mulher de Francisco da Gama, 2º conde da Vidigueira, filho de Vasco da Gama, o herói d’Os Lusíadas, que era assim “compadre” do conde Francisco de Portugal e foi avô de Portugais. Os Macedos ficaram assim, em relação aos Portugais, primos da mão esquerda, como os Furtados de Mendonça em relação aos duques de Aveiro. Parece que os Macedos de Santarém e arredores pertenciam a esta família, o que poria Camões ainda em relação de parentesco mais estreito com os Portugais do que já vimos que ele tinha. Já Teófilo Braga, sem saber de vários Macedos que apontámos, aventara que isso explicaria que os Portugais tivessem dado a mortalha com que Camões foi a enterrar… Tal coisa não era necessariamente uma prova de parentesco próximo, nem de caridade indispensável, mas uma atenção amiga e generosa para com um morto estimado e que era um poeta ilustre [23]. Todavia, as ligações subsistem e apontam para outras que por certo nos darão, numa inteireza ainda mais completa do que a que estabelecemos, a situação de Camões, no mundo aristocrático que ele soube tornar universal, ao cantar o Gama, ele mesmo e mais família. Todos primos del-rei, como se dizia ironicamente. O caso é que eram e não se esqueciam disso, que era a sua razão de viver, e até de escreverem poemas épicos.
Madison, Agosto de 1969.
NOTAS
1 Georges Le Gentil (cf. Camões, trad., pref. e notas de José Terra, Lisboa, 1969, p. 16) chama a atenção para o facto de Camões, na sua enumeração dos espanhóis que formam as hostes castelhanas de Aljubarrota, chamar “sórdidos galegos, duro bando” aos conterrâneos do antepassado com que o seu nome viera para Portugal, no que talvez mostrasse ignorar essa origem. Além de que seria muito pouco provável que, naquele tempo, alguém com presunções de nobreza ignorasse as suas origens a menos que isso lhe conviesse, Camões não se refere, no passo em questão (Canto IV, est. 10), a galegos radicados em Portugal, ao contrário do que Le Gentil extrapolou ou se pode depreender que tenha extrapolado, mas apenas aos galegos enquanto um dos povos subordinados ao cetro castelhano. O seu antepassado incluir-se-ia, não nesse passo, mas na est. 33 do mesmo canto, quando é dito que “dos Portugueses/ Alguns tredores houve algumas vezes”. E isto era, em matérias dinásticas, um problema comum a todas as famílias. A conclusão da apóstrofe aos galegos, na est. citada, poderia dar-nos um outro sentido para o epíteto “sórdido” aplicado aos galegos, como acentuando a vileza deles em oporem-se aos portugueses, em Aljubarrota. O passo, no entanto, não pode levar-nos a concluir que Camões ignorasse as sus origens galegas, mas sim que se indigna contra a posição por eles, enquanto súditos de Castela, assumida, nesse momento histórico. Aliás, o que faria o sentimento de nobreza de Camões seria menos esse antepassado que as ligações que a família veio a ter, e de que este estudo trata.
2 Na nossa vasta sequência de estudos sobre Inês de Castro, que ocupa a maior parte dos dois volumes da 1ª série dos nosso Estudos de História e de Cultura, provámos que, a partir dos fins do século XVI, e até os meados do século XVII, todos os escritores que glorificaram Inês, ou a usaram como assunto literário, quase sem exceção estão envolvidos num processo direto ou indireto de magnificação genealógica da pessoa dela, como “matriarca”. Havíamos guardado para aqui o interessante fato de que aquele que a elevou, após Garcia de Resende e António Ferreira, à maior categoria mitológica – Camões – se pode também considerar o iniciador desse processo pelo qual Inês, de progenitora de reis e de imperadores, passa a sê-lo também das casas grandes e pequenas. Adiante, no texto, se verá melhor o caso de Camões.
18 Estará ainda presente na memória de alguns o que foi a agitação em copo de água, à volta da publicação de Luís de Camões, Fabuloso, Verdadeiro, de Aquilino Ribeiro, que usava dos mesmos materiais de Teófilo Braga, e de Wilhem Storck (como das notas de Carolina Michaëlis à tradução da storckiana biografia) e de outros, em que toda a patrioteirada que nunca lera Camões saiu a defendê-lo, criando-se, por paixões políticas, uma atmosfera que fez muita gente de melhor qualidade, e por certo do mais honesto patriotismo, ficar hipersensibilizada a qualquer referência ao livro de Aquilino, cuja leitura será conveniente, se acompanhada por este nosso estudo… Tanto assim foi que, quando, ao publicarmos em Cadernos de Poesia, em 1951, o texto da conferência de 1948, acrescentámos, entre várias notas, um insignificante PS de cinco linhas ao prefácio, em que consignávamos “a mais calorosa adesão” à desmistificação que Aquilino tentara (e que nada tinha que ver com o nosso texto todo dedicado à revelação da dialética camoniana), muita crítica só viu ou só leu esse PS. Numa conferência que terá sido, ao tempo, como que a resposta da Faculdade de Letras de Lisboa ao meu atrevimento camoniano, Jacinto do Prado Coelho, ao publicá-la então na Revista da mesma faculdade, apunha-lhe uma nota em que só nos citava para condenar a “adesão”. E essa nota persiste na edição em volume do mesmo texto, em A Letra e o Leitor, Lisboa, 1969. Francamente, somos mais sensíveis às notas que o público lê que aos elogios em dedicatórias amáveis que o público não vê.
19 Muitas mais interligações entre as personalidades e gerações e grupos familiares poderia ser referidas, que mais amplamente comprovariam o caráter fechado e estrito do senhorialismo português, mas com prejuízo da própria clareza da demonstração. Muitas dessas interligações podem ser vistas nos nossos Estudos de História e de Cultura, vols. I e II da 1ª série. Para cada linhagem ou grupo de interligações, é evidente que, a cada lapso de tempo, havia um membro que era importante e influente, e à volta do qual mais ligações se estabeleciam. É o caso de vários dos Teles de Meneses ou de D. Francisca de Aragão.
20 Segundo os documentos encontrados por Juromenha, sabe-se que, em Maio de 1582, à mãe de Camões, muito velha e pobre, eram garantidos 6000 réis da tença anual que o filho recebera (quando lhe pagavam). Em Novembro de 1585, eram reconhecidos os restantes 9000, à senhora que estaria nos seus oitenta anos (pensemos que pode ter casado muito jovem, e ser apenas vinte anos, ou menos, mais velha que seu filho). Por este último documento, sabemos que Camões havia sido provido na capitania de Chaul: “… havendo respeito aos serviços de Simão Vaz de Camões e aos de Luís de Camões seu filho, cavaleiro da minha casa (sublinhado nosso), e a não entrar na feitoria de Chaul de que era provido…”. Seria um parente de sua mãe quem, capitão de Chaul, lhe conseguira o provimento em sua sucessão? Camões não chegou, como se vê, a tomar posse do lugar – o que não quer dizer que tivesse de partir para a Índia, porque esses lugares podiam receber-se e deles se tomar posse para serem vendidos a outros.
21 Georges Le Gentil (ob. cit., p. 17) aponta o seguinte: “Mariz e Severim de Faria tentam ligar a mãe do poeta à ilustre família dos Macedos de Santarém. No entanto, ela é chamada Ana de Sá em todos os documentos oficiais.” Poderíamos a esta observação acrescentar – o que será um dado da autenticidade deles – que também o é nos assentos de 1550 e de 1553, citados por Faria e Sousa, e referentes à partida irrealizada e à efetiva de Camões para a Índia. O argumento não colhe, em face de tantas coincidências apontando ligações de Sás e de Macedos com os Camões, e apenas prova (com as reiterações de Faria e Sousa que não deixaria de querer acentuar essa “macedide” de Camões) que a senhora usava esse nome. Tudo quanto se sabe dos usos do tempo mostra que as damas, em geral, usavam os nomes de suas mães ou avós.
22 O fato de Manuel de Portugal ser duas gerações mais velho que Camões nesta tradição genealógica que o faria primo-direito de Jorge de Macedo, o avô de Camões (que seria sobrinho-neto da Filipa de Macedo, avó daquele D. Manuel), não é de estranhar. Ele, que faria uma dezena de anos de diferença de Camões, era o filho mais novo do segundo casamento de seu pai, e os Macedos podem ter casado todos jovens, sendo que Filipa de Macedo era filha do segundo casamento de seu pai e que o irmão de quem eles descendiam podia ser muito mais velho do que ela. O mesmo sucedeu na família dos Portugais, em circunstâncias camonianas também. Francisco de Portugal, comendador de Fronteira, o poeta do século XVII (nascido quando Camões morria), era 4º neto do bispo D. Afonso de Portugal, e casou com Cecília de Portugal, a detentora do cancioneiro camoniano manuscrito e ainda inédito que é conhecido pelo seu nome, que era 3ª neta do mesmo bispo. Este Francisco era filho de Lucas de Portugal, neto dos 2ºs condes da Vidigueira (esta condessa era filha de Francisco, o 1º conde de Vimioso). Cecília, por seu lado, era bisneta de Martinho de Portugal, arcebispo do Funchal, irmão inteiro do 1º Vimioso (e filho pois da Macedo), e de uma Catarina de Sousa (do imenso clã de Sousas de costela real afonsina) que tivera suas aventuras com o prelado; era neta de outra Cecília de Portugal, filha dele, que casou com um Castro; e filha de uma Mariana de Portugal, filha do casamento anterior, que casou com um António Pereira de Berredo.
23 A pobreza da mãe de Camões e a dele deve entender-se não em termos burgueses ou plebeus, por pobreza que fosse, e ao contrário do que os românticos fizeram para sublinhar o mito do poeta infeliz e desprezado da sociedade, e os positivistas, para acentuarem como a monarquia não protegia os génios… Uns e outros leram mal, e interpretaram mal, o que os primeiros biógrafos e mais autores antigos especularam, como nobres de semelhante extração que era, interessados em acentuar o direito à comenda e à tença, por mérito literário, que achavam ser o deles, e para o que Camões, grande poeta de muito génio e pouca e mal paga tença, servia às mil maravilhas. A pobreza evidentemente existia, mas a insistência aristocrática nela, em parentes de servidores ou servidores dos reis, era parte do processo de ordenhar a vaca régia. E não era nunca uma destituição absoluta de anónimos habitantes das cidades, vilas e campo, que pobres fossem como eles. Foi o que procurámos retratar social e psicologicamente no conto Super flumina Babylonis, do livro Novas Andanças do Demónio, que contém uma importante visão nossa da personalidade poética de Camões, destinada a escapar aos eruditos que não leem contos, e aos literatos que não leem Camões.