Ainda em comemoração ao quinto centenário de nascimento de Camões, trazemos o primeiro capítulo da tese de doutorado de Sena, O soneto de Camões e o soneto quinhentista peninsular, defendida em 1964 e publicada em 1969, da qual anteriormente havíamos postado o Prefácio e a Introdução. Neste primeiro capítulo, Sena faz uma retrospectiva das edições das Rimas camonianas de 1595, 1598 e 1616, comentando as circunstâncias em que foram editadas, os responsáveis envolvidos nas publicações e, principalmente, as inclusões de poemas inéditos nas reedições. Percebemos nesse texto o traço tipicamente seniano de acrescentar extensas notas explicativas, analisando em pormenor alguns aspectos levantados no corpo principal, o que constitui muitas vezes um “pequeno ensaio” por si mesmo.
Havia Camões morrido uns quinze anos antes, quando, dos prelos de Manuel de Lyra, à custa do livreiro Estêvão Lopes, apareceu a 1ª edição das Rhythmas, divididas em cinco partes, a primeira das quais era composta por sonetos.
O impresso privilégio real, concedido por dez anos ao livreiro, está datado de 30 de Dezembro de 1595. É de 3 do mesmo mês, mas do ano anterior, a licença final para a impressão da obra, concedida após o parecer do censor Fr. Manuel Coelho [1] e a licença do Conselho. Isto quer dizer que a obra foi impressa durante o ano de 1595; que aguardou a impressão da folha em que vem a licença real concedida no penúltimo dia desse ano; que foi depois ultimada para publicação; e que esta não pode ter-se dado antes de fins de Janeiro ou em Fevereiro do ano seguinte, se não mais tarde.
Usando do mesmo alvará real, mas requerendo nova licença que foi concedida em 8 de Maio de 1597 (porque o livro trazia muita matéria nova, tinha de requerê-la, e não apenas de submetê-lo a verificação), Estêvão Lopes publicou, com data de 1598, uma reedição das Rimas (a pedantaria titular da 1ª edição desaparecera, e com ela o prólogo crítico mais tarde atribuído a Soropita) “acrescentadas nesta segunda impressão”. Os sonetos, na verdade muito acrescentados, continuavam a formar a primeira parte do volume. Se a licença do Santo Ofício está datada de 8 de Maio de 1597, é porque Estêvão Lopes apresentou algum tempo antes, já organizado, o novo original a exame. Logo, o êxito de livraria da 1ª edição havia sido enorme, pois que, em princípios de 1597, o dito estava já apresentando ao Santo Ofício a reedição ampliada de uma obra cujos exemplares haviam sido postos à venda um ano antes. No volume de 1598, a carta-dedicatória de Estêvão Lopes a D. Gonçalo Coutinho, o patrono da edição, aparece redatada de 16 de Janeiro de 1598; e é, com alterações, a mesma que viera, mas datada de 27 de Fevereiro de 1595, na 1ª edição, que igualmente lhe era dedicada.
Não parece que possa ser estabelecida alguma relação directa e proporcional entre as datas das licenças das edições e as das cartas-dedicatórias que nos esclareça sobre o provável momento de publicação das edições. Se, para a 1ª, entre a licença e a carta, medeiam cerca de três meses, o prazo correspondente é de oito meses para a 2ª. Por outro lado, se a 1ª edição teve de esperar pelo privilégio, a 2ª não teve; pelo que não podemos, como para a 1ª, supor que a 2ª apareceu cerca de catorze meses depois da licença (e, portanto, em Julho de 1598). Mas, na verdade, se tinha pressa de publicar o volume, não há razão alguma para pensarmos que Estêvão Lopes, tendo as licenças e o volume em impressão, aguardasse que esta se concluísse para solicitar o privilégio. E há razões para pensarmos o contrário, porque este privilégio não se refere apenas às Rimas, mas também a Os Lusíadas, “que já foi impresso, por agora haver poucos”. Ora, com efeito, a edição da epopeia, aqui prevista, havia sido autorizada em 15 de Novembro de 1594, e foi publicada em 1597. A falta de colofons nestas edições é que nos obriga a deduções cronológicas.
Logo, e na verdade, a edição chamada de 1595 terá aguardado a concessão do privilégio pedido também para Os Lusíadas, mas sobretudo para ela, que foi imediatamente publicada, enquanto a edição do poema épico estava nos planos de Estêvão Lopes para o ano seguinte a 1596. A edição de 1598, por sua vez, ou foi publicada em princípios desse ano (admitindo-se que os prelos de P. Craesbeeck, que a imprimiram, eram mais rápidos que os de Manuel de Lyra), ou só em Julho do mesmo ano. De qualquer modo, terá a edição saído mais ou menos no decurso do 1º semestre de 1598. Foi reimpressa só em 1607, à custa de Domingos Fernandes, com licença final concedida em 10 de Julho de 1606.
O curtíssimo prazo entre a 1ª e a 2ª edição das Rimas aponta, por certo, para o êxito excepcional do livro. Mas não só para isso. O êxito desencadeou sem dúvida uma chuva de inéditos, na posse de colecionadores, e uma agitação suficiente para, no prazo de um ano, ter sido possível a Estêvão Lopes apresentar à Censura um volume que aumentava de 40% as espécies atribuídas a Camões. Isto não deixa de ser um pouco estranho. E uma outra hipótese nos surge no espírito, que, se não invalida o êxito que deve ter havido, lança sérias dúvidas sobre o modo como a reedição foi organizada. É crença corrente da crítica que esta 2ª edição é melhor do que a 1ª. As observações que fizemos, cotejando-as rigorosamente, mostram que ela foi sobretudo correctiva, não no sentido de ter encontrado e preferido, para os poemas já publicados, melhores lições, mas no sentido de emendar-lhes eufonicamente os versos (quando não é o dedo de uma mais rigorosa censura que se adivinha) [2]. E, quanto aos poemas acrescentados, será bom ponderar o seguinte.
Se de cerca de 170 poemas da 1ª edição cerca de uma dúzia foram atingidos por dúvidas de autoria (logo, ou já no nosso tempo, mas em função de provas antigas), tendo apenas sido retirados por Estêvão Lopes os que constituíam maior escândalo (como as cantigas de Garcia de Resende, já impressas no Cancioneiro Geral, ou algum poema entretanto impresso com outro nome de autor), das cerca de 70 peças acrescentadas uma dezena oferece algumas dúvidas. A proporção de erro é, num e noutro caso, a mesma. O que não aponta para maior cuidado selectivo de Estêvão Lopes, na reedição.
Ficamos, assim, desconfiados de que ele, jogando no êxito que a obra teria, não incluiu na 1ª edição muita coisa que já tinha em mãos. Se o êxito fosse grande, suspendia a tiragem de exemplares do livro, para lançar então uma edição “acrescentada”, que os compradores da 1ª teriam de comprar também. Mas este desígnio deve ter-se cruzado com o facto de o êxito do livro ter posto a claro as falhas da 1ª edição quanto a atribuições erradas, precipitando o cálculo de lançamento da reedição melhorada.
O caráter correctivo desta edição de 1598 (introduzindo nos poemas uma profusão de indicações de leitura, marcando com apóstrofos as elisões necessárias à leitura métrica, que jamais Camões algum introduziria em manuscrito seu, e que não são das competências ou incompetências ortográficas dos tipógrafos – indicações que, em alguns poemas, chegam a ser 40% das emendas introduzidas) deve ter resultado de críticas que terão circulado acerca da má metrificação de Camões, ou do descuido com que os poemas teriam sido copiados e impressos. Estas críticas eram perfeitamente naturais, quando décadas haviam passado sobre o sistema fonético de metrificação em que Camões se formara, usando o hiato como recurso expressivo (ou elidindo-o violentamente sempre que ao verso isso interessasse), e quando o ouvido e os olhos dos leitores de poesia avançavam já para os hábitos barrocos de uma sólida e consonântica metrificação.
Na 1ª edição, os critérios e as responsabilidades da crítica textual que presidira à sua organização são expostos e assumidos num prólogo crítico, anónimo, que, como acentuamos acima, não reaparece na reedição. Reapareceu, atribuído a Fernão Rodrigues Lobo Soropita, na edição de 1616, na edição de 1616, de Domingos Fernandes, a quem passara o privilégio renovado (depois de expirados os dez anos, é óbvio) à viúva de Estêvão Lopes. Com ser de uma pedantaria que hoje nos parece excessiva (e que não é maior que a de qualquer dos teóricos e críticos do século XVI italiano, que serviam de modelo para aquelas belezas de erudição), o prefácio de Soropita é uma inteligente peça crítica, em que se defendem princípios ainda hoje válidos em crítica de textos, embora não tão usados como seria para desejar. Diz ele: “Os erros que houver nesta impressão não passaram por alto a quem ajudou a compilar este livro, mas achou-se que era menos inconveniente irem assim como se acharam por conferência de alguns livros de mão, onde estas obras andavam espedaçadas, que não violar as composições alheias, sem certeza evidente de ser a emenda verdadeira, porque sempre aos bons entendimentos fica reservado julgarem que não são erros do autor, se não vício do tempo, e inadvertência de quem as trasladou. E seguiu-se nisto o parecer de Augusto César, que, na comissão que deu a Vário e a Tuca para emendar a Eneida, de Virgílio, lhe(s) defendeu expressamente que nenhuma cousa mudassem, nem acrescentassem, porque em efeito é confundir a substância dos versos e conceitos do autor com as palavras e invenção de quem emenda, sem ficar ao diante a certeza se o que se lê é próprio, se emendado. E por isso se não buliu em mais que só aquilo que claramente constou ser vício de pena, e o mais vai assim como se achou escrito, e muito diferente do que houvera de ir, se Luís de Camões em sua vida o dera à impressão: mas assim debaixo destas afrontas, que o tempo e a ignorância lhe fizeram, resplandece tanto a luz de seus merecimentos, que basta para neste género de poesia não havermos inveja a nenhuma nação estrangeira”. Este judicioso critério, tão elegantemente expresso, não evitara, segundo declaração do próprio Soropita, que, entre os sonetos “que aqui vão impressos como seus”, não tivesse passado o “Espanta crescer tanto o crocodilo”, o qual “depois de impresso se soube que não era seu”. E muito menos os lapsos que nos parecem mais graves, como a inclusão das cantigas de Garcia de Resende e de composições claramente atribuíveis a Diogo Bernardes. No entanto, não são tanto como parecem. Das revelações de Soropita fica patente que ele e Estêvão Lopes não dispuseram de autógrafos do poeta. Não há, em todo o prólogo, senão declarações sobre os livros de mão, os erros de quem copiou, etc. E, provavelmente, naqueles livros, a confusão de autorias seria tão grande como nos que chegaram até nós. Que, no meio dessa confusão, houvesse duas cantigas do Cancioneiro Geral tão estilisticamente inconfundíveis com Camões, não é para admirar: será mesmo de admirar que a edição de 1595 não apresentasse mais obras cuja autoria fosse alheia ou duvidosa do que aquelas que apresenta. Ora o critério de respeito por lições que não havia modo de melhorar sem falsificá-las parece que não prevaleceu na reedição de 1598. E quem sabe se isso não terá influído, por desacordo entre Soropita e Lopes (ou entre o partido do respeito e o da emenda, alinhados atrás de cada um), para a desaparição do prólogo conspícuo e erudito, que só reaparece na Segunda Parte das Rimas, em 1616, vinte anos depois de ter sido primeiro publicado e dezoito de ter sido suprimido da edição de 1598 e da reprodução desta que a edição de 1607 é. Não se sabe, parece, quando morreu Soropita; mas terá nascido em 1562. Será que em 1616 já tinha morrido, e com ele a sua oposição a participar de beneficiações indebitamente feitas a Camões? Camilo Castelo Branco, ao publicar-lhe Poesias e Prosas Inéditas, não deduziu delas data ulterior a 1606. Não há notícias da questão, se a houve. Mas a hipótese é muito plausível, e converge com as observações e as reservas que fazemos à edição de 1598, apesar do mérito, que ela teve, de revelar novos inéditos, ou completar textos que estariam incompletos [3]. A reedição de 1598 foi reeditada em 1607 e em 1614, por Domingos Fernandes, sem acrescento algum, apesar dos anúncios que ele fazia, declarando-as acrescentadas, do mesmo passo que prometia uma “segunda parte”. Esta saiu, em volume separado, em 1616, mas fora precedida, no ano anterior, pela reedição de Anfitriões e de Filodemo (primeiro publicados em 1587), e pela publicação do poema Da criação e composição do Homem, atribuído a Camões. Estas obras não figuram, ao contrário do que às vezes tem sido dito, na Segunda Parte de 1616: em alguns volumes, aqueles folhetos com frontispício próprio estão encadernados juntos com ela.
A nova parte apresentava mais de meia centena de inéditos. Uma dúzia deles é de atribuição duvidosa, numa proporção de 20%, quase três vezes superior à de 1595 e 1598. A Primeira Parte, como passou sempre a ser intitulada a reedição aumentada de 1598, continuou a ser reeditada: 1621, 1629, 1632, etc., tendo os Craesbeeck, que tantas edições camonianas tinham imprimido, passado a dirigir a indústria por conta própria. Na edição de 1663, de António Craesbeeck de Melo, quase meio século depois da Segunda Parte, aparece um novo inédito, o soneto “Doce contentamento já passado”. A nova colheita aproximava-se, e seria as edições de Álvares da Cunha e de Faria e Sousa, que constituem uma problemática diversa da que é de certo modo comum às edições que referimos. Em matéria de sonetos, temos pois até 1663, os de 1595, os acrescentados em 1598, os da Segunda Parte de 1616, e o soneto daquela última data. Os sonetos que, desde 1595, entraram e ficaram (ou saíram) na obra impressa de Camões atingem a cifra de 378 [4]. A média dos que persistem nas edições modernas orça por 195, com um mínimo de 166 e um máximo de 211, que não são sempre os mesmos [5]. Os que por agora discutiremos, e cuja forma externa poremos em cotejo entre si e com as dos autores citados, é menor: pouco mais de uma centena. Tratemos, para tal, cada edição de per si.
NOTAS
1 Na nossa obra Uma Canção de Camões há algumas observações e considerações (preliminares de estudo mais amplo) sobre este censor e outros nas suas relações com o texto das obas de Camões. O parecer de Fr. Manuel Coelho, não datado, mas que serve de base à licença de 30 de Dezembro de 1594 para a edição de 1595 das Rimas diz o seguinte: “Vi por mandado de Sua Alteza o livro intitulado Rimas, de poesia de Luís de Camões, assi como vai não tem cousa alguma contra a nossa santa Fé Católica, ou contra os bons costumes e guarda deles, antes com sua poesia pode ensinar, e com a variedade deleitar a muitos”, após o que discute e explica (como Fr. Bartolomeu Ferreira fizera para a 1ª edição de Os Lusíadas), com citações teológicas, os vocábulos Deuses, Fado, Fortuna, “e outros semelhantes”, declarando-os aceitáveis, “como mostrei longamente na aprovação que dei às Lusíadas do mesmo autor, que agora novamente se imprimem, o que, visto bem, se pode este livro imprimir”. O parecer que permitiu a licença (de 8 de Maio de 1597) para a reedição de 1598 dizia apenas: “Neste livro não há cousa alguma contra a fé ou os bons costumes (sem data). – Fr. António Tarrique”. É, porém, muito curioso o parecer para a licença de reedição da compilação de 1598, que foi feita em 1607 (edição que, como as “duas” primeiras de Os Lusíadas, tem dois frontispícios diferentes, como é sabido, e também variantes textuais, como verificámos): “Vi este livro que se intitula Rimas de Luís de Camões, o qual já foi muitas vezes impresso e emendado: mas assi como vai não tem cousa contra a nossa Santa Fé, e bons costumes. Em o Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, a 15 de Junho de 1606. – Fr. António Freire”. Na verdade, a menos que tenha realmente existido uma reedição de 1601 citada por Faria e Sousa, e que se sumiu, as muitas impressões haviam sido… uma única, a de 1598, já que esta, por sua vez, era o volume de 1595 muito ampliado. Mas o “já muitas vezes (…) emendado” pode entender-se como lançando alguma luz sobre a fórmula banal e comum da licença de 1594 (“assi como vai…”), que havia sido também usada para a tão emendada edição dos Piscos de Os Lusíadas, e sobre o seco parecer de 1597, no sentido de os textos terem sido retocados para as edições de 1595 e 1598. O parecer para a licença da edição de 1614 da Primeira Parte das Rimas (e que é reimpresso na edição de 1621, que é também da Primeira Parte) diz o seguinte: “Vi estas Rimas de Luís de Camões impressas no ano de 1598, e assi como vão emendadas em 4 ou 5 lugares que julguei por indecentes, me parece que e podem imprimir. Nossa Senhora da Graça de Lisboa, 11 de Julho de 1614. – Fr. António Freire”. Atente-se, neste caso, em duas coisas: o editor não levou a revisão um exemplar das edições mais recentes, já revistas acumuladamente, mas um exemplar de 1598, como se depreende do parecer; e Fr. António Freire, nos oito anos que envelhecera desde o parecer que dera para o mesmo volume em 1606, tornara-se mais “prude”, ou a sua atenção fora chamada a capítulo: 4 ou 5 lugares indecentes haviam-lhe escapado… Quando na edição de António Álvares da Cunha (1668) são publicados novos inéditos que constituem assim a Terceira Parte (que só ela é da responsabilidade do Cunha, e que bibliografias e camonistas misturam, como as encadernações, com a Primeira Parte e a Segunda revistas por João Franco Barreto e publicadas respectivamente em 1666 e 1669), a licença de 21 de Janeiro de 1667 diz: “Vistas as informações que se houveram, pode-se imprimir a Terceira Parte das Rimas de Luís de Camões, na forma que vai emendada, e depois de impressa tornará ao Conselho para se conferir, e se dar licença para correr, e sem ela não correrá” – e seguem-se a data e as assinaturas de seis conselheiros. Esta licença é da maior importância. Tem Faria e Sousa sido acusado de retocar os textos camonianos, que indubitavelmente retocou (ainda que não tanto quanto genericamente se supõe); e onde as composições comuns à sua edição e à de Álvares da Cunha (que se serviu dos manuscritos de Faria, ao que se tem concluído) apresentam ligação independente, é norma seguida usarem-se as lições da edição do Cunha. Mas se, de um modo geral, as licenças que temos observado lançam suspeitas sobre o textos impressos (quando haja divergência entre eles e lições dos cancioneiros manuscritos), parece que, no caso do Cunha e do Sousa, os editores nunca se interrogaram sobre este dilema: não estariam, ao preferirem as lições de Álvares da Cunha às de Faria e Sousa, preferido afinal as lições dos devotos censores do Cunha? Em resumo: as Rimas de 1595 haviam sido licenciadas com um discreto “assi como vai”, no entanto ominosamente igual ao que sanciona a edição dos Piscos: as Rimas de 1598 haviam passado pelo crivo, tanto quanto se pode deduzir do parecer respectivo, do facto de, reimpressas em 1607, ser achado que já tinham sido muito emendadas e de, para a edição de 1614, terem sido ainda corrigidas em 4 ou 5 lugares tidos por “indecentes” (o cotejo exaustivo entre os textos de 1595 e a reimpressão deles em 1598 revela algumas emendas que serão da censura); a Segunda Parte, de 1616, já foi declaradamente vítima dos mesmos critérios, e pôde imprimir-se depois de mudado e riscado no original o que foi apontado pelo censor; a Terceira Parte, de 1668, como a anterior, tudo leva a crer que foi amplamente emendada. É interessante notar algumas das obras que foram vistas por Fr. Manuel Coelho (o censor das Rimas de 1595) e por Fr. António Tarrique (o da edição de 1598). Feito um levantamento dos censores nos registos bibliográficos de A. J. Anselmo (Bibliografia das Obras Impressas em Portugal no Século XVI, Lisboa, 1926), e em que nem sempre são mencionados os nomes de quem deu os pareceres, para obras impressas entre 1572 (data da 1ª edição de Os Lusíadas) e 1600 (data limite da bibliografia de Anselmo), encontram-se parecerem assinados por Fr. Manuel Coelho entre 1594 e 1600, e por Fr. António Tarrique em 1597-99. Os pareceres de Fr. Bartolomeu Ferreira vão, nesse reportório e nas condições descritas, e 1571 a 1594, inclusive – e há sobre eles comentários de Sousa Viterbo, em Fr. Bartolomeu Ferreira – O primeiro censor de “Os Lusíadas” – Subsídios para a História Literária do século XVI em Portugal, Lisboa, 1891. Nesta obra, Viterbo computa 140 obras, das mais diversas, revistas por Fr. Bartolomeu entre 1571 e 1603. Acidentalmente, menciona Fr. António Tarrique, do qual viu seis pareceres entre 1596 e 1601. Manuel Coelho, além das Rimas de 1595, aprovou Os Lusíadas de 1597, O Lima (1596), de Diogo Bernardes, o Naufrágio da “Nau S.to Alberto” (1597), de Lavanha, a Primeira Parte (de Fr. Bernardo de Brito) da Monarquia Lusitana (1596), esta com Fr. Luís de Sotomayor, a Primeira Parte das Crónicas (1600), de Duarte Nunes de Leão, e uma edição comentada do Cântico dos Cânticos (1598), esta com Fr. António Tarrique, e ainda diversas outras obras. Tarrique, além dos pareceres mencionados, reviu por exemplo uma edição lisboeta (1598) do Primaleón (cuja 1ª edição era de 1512) e a (1600) do Guzmán de Alfarache. Parece, em princípio, que Fr. Manuel Coelho era mais revisor de poesia e de história (e nisto Os Lusíadas coincidiam), e Fr. António Tarrique o era mais da ficção (de que seria especial amigo ou inimigo…) e de exegese bíblica. Cremos que aquele Fr. Luís de Sotomayor é o lente da Universidade de Coimbra que foi despojado da sua cátedra, em 1580, por ter-se manifestado pelo Prior do Crato, segundo F. Freire de Carvalho, Primeiro Ensaio, etc., Lisboa, 1845, nota 77.
2 Na nossa obra já citada na nota anterior encontra-se o inventário e a classificação das emendas de 1598 ao texto de 1595 da canção “Manda-me amor…”; e também para outras composições é referida a esmagadora percentagem de emendas que são meras indicações de leitura, que nenhum poeta jamais apôs a escritos seus. Em apêndice deste presente estudo, encontram-se, comentados, os valores globais e a classificação de todas as emendas de 1598, conforme as espécies líricas e no total das composições que eram de 1595. É de fazer-se notar, todavia, que nas listas dos sonetos de 1595 e de 1598, adiante dadas no texto, são observáveis, comparando os primeiros versos comuns às duas edições, algumas dessas intervenções “correctivas”.
3 Além de cerca de 70 composições inéditas (com excepção da ode de 1563 e do soneto e dos tercetos já impressos em 1576, e que haviam escapado em 1595), algumas das quais são suspeitas ou inteiramente alheias, a edição de 1598 amplia o commiato da canção “Manda-me amor”, acrescenta duas estrofes à canção “Vinde cá…” (cuja inserção nos lugares em que andam nos parece discutível), dá mais estrofes aos “Disparates da Índia”, etc. Não julgamos pacífico que estes aumentos tenham sido resultado de cortes da censura em 1595, que deixariam de verificar (porquê?) em 1598, como por exemplo aventa Rodrigues Lapa (na sua edição antológica) para as duas estrofes da canção “Vinde cá…”. O exame que fizemos dos pareceres e os cotejos não confirmam – antes pelo contrário – uma especial benevolência para a edição de 1598. Pode, pura e simplesmente, ter havido precipitação no preparo da edição de 1595, com a consequência de graves saltos na composição tipográfica, se é que alguns desses acrescentos não são resultados das manobras editoriais de Estêvão Lopes… Ao tratarmos, como estamos tratando, das edições da obra lírica, não entramos em linha de conta com o facto de as primeiras cartas de Camões aparecerem na edição de 1598, ou de, na edição de 1645 das Rimas, aparecer pela primeira vez o “El-Rei Seleuco”.
4 Segundo o índice apresentado por J. G. Chorão de Carvalho no valioso estudo “Sobre o texto da lírica camoniana” (Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, XVI, 1948, pp. 224-38, e XV, 1949, pp. 53-91). Este estudioso, que hoje é o Prof. Herculano de Carvalho, não trata propriamente dos “textos”, e sim das questões de autoria, naquele trabalho, a que voltaremos a reportar-nos.
5 Segundo os números apresentados por A. Salgado Júnior em Camões – Obra Completa, ed. Aguilar, Rio de Janeiro, 1963, edição a que fizemos longa crítica no estudo O Camões da Aguilar, publicado no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, em cinco artigos (25/1, 1/2, 8/2, 15/2 e 22/2/63). Aí diz S. J., num quadro, que a edição Rodrigues-Lopes Vieira tem 197 sonetos, a de Costa Pimpão 166, a de Hernâni Cidade 204, e a dele 211. O nosso 195 é a média destes quatro valores.